sexta-feira, 24 de maio de 2013

Três Quilômetros

Descobri hoje em um documentário fascinante sobre canetas Bic (o que não inventam) que uma caneta Bic Cristal escreveria três quilômetros se medíssemos seu traço em linha reta. Eu gosto da Bic Cristal. Tenho várias canetas de pena para ocasiões especiais, mas para a rotina, gosto da Bic Cristal. Porto Alegre, todos sabemos, ainda está na era da Bic Cristal e do papel carbono. Pelo menos na área da saúde. Algumas unidades já tem vários computadores, mas os prontuários e as receitas vão de caneta esferográfica e papel. Assim como boletins de atendimento das emergências, com aquela segunda via carbonada maravilhosa,  que nem o próprio autor entende. Tudo isso pra dizer que eu devo ter escrito uns cinco quilômetros na última semana. Peguei uma Bic preta novinha em folha na segunda-feira, em Guaíba. Atirei-a na lixeira, vazia, às oito e trinta e cinco da quarta. Peguei outra nova, que já está no final. Nunca havia pensado em medir a minha quantidade de trabalho pela distância percorrida pelo meu traço.
***
Fui ao Centro buscar a escritura da minha linda casa nova. Adoro ir ao Centro. Fui caminhando da Cidade Baixa até a Siqueira Campos. Subi a Borges de Medeiros e fui caminhando pelo Viaduto Otávio Rocha, na parte de baixo, admirando todas aquelas pixações. (São feias e dão um aspecto de sujeira. Nenhum pouco artísticas. Mas fazem parte do cenário desde que o mundo é mundo. As mais legais são as que defendem o Irã, como se fosse revolucionário impedir menininhas de frequentar a escola. Viva o Brasil, que é muito mais revolucionário que o Irã!) Quando cheguei na esquina com a Jerônimo Coelho, escorreguei e caí. Virei o pé e caí sentada no chão. Não foi nada grave, estava a me levantar sozinha, quando percebi uma mão que sustentava o meu cotovelo, auxiliando meu equilíbrio. Olhei e vi que a mão pertencia a um homem sujo e barbudo, morador de rua, que cheirava a cachaça e suor velho. Só reconheci o Valdair quando ele disse:
- Doutora! A senhora caiu! Está bem? - enquanto um casal limpinho e de meia idade olhava espantado para a cena, vindo em meu socorro, com cara de pavor - Essa é a minha doutora. Ela já me tirou do buraco uma vez.
- Oi, Valdair, obrigada - respondi eu, ajeitando as sacolas no braço (impossível ir ao Centro e não sair com sete sacolinhas) - Pelo visto vou ter que tirar de novo. O que houve? Não tinhas voltado para casa?
O casal seguiu pela Borges, olhando para trás. Avisaram o brigadiano que estava na outra esquina, ainda desconfiados que o Valdair estava a me assaltar. 
- Olha ali, doutora, chamaram o guarda. Eles pensam que vou lhe fazer mal.
O PM perguntou se estava tudo bem. Respondi que sim, que tratava-se de um paciente meu, que viera em meu socorro após um tombo. Valdair continuou:
- Eu tinha parado, tinha voltado para a Janaína, até fralda eu troquei, doutora. Levei a nenê no hospital um dia que ela ficou doente. Tinha arrumado um trabalho.
- E o que houve? - eu tinha encontrado o paciente em uma consulta há cerca de 45 dias, de barba feita e camisa de poliéster limpinha e cheirosa. Cheio de planos, havia voltado a ser pai dos seus seis filhos. E marido da Janaína.
- Ah, a assistente social me arrumou um trabalho. Um trabalho bom, de lavar prato. Mas num boteco, doutora. Aqui na Andrade Neves. Bebum trabalhando em boteco não dá, né?
- É, Valdair, em boteco fica difícil. Volta pra casa. A Janaína está sozinha com os meninos. 
Fui até a parada do ônibus, esperei o Agronomia com ele e meti uma nota de dez reais no bolso do casaco dele. Pode ser que gaste tudo em cachaça. Mas era a única chance dele desembarcar na vila. 
Ora bolas, pensei eu. Lavar prato em boteco. Às vezes não sei em que mundo a assistência social vive!