quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Hora de dormir

Criei em minhas filhas o hábito delicioso de ouvir histórias e musiquinhas na hora de dormir. Virou ritual. Adoro. Às vezes, quando estão quase dormindo, fico a olhar para seus rostinhos na penumbra e canto qualquer coisa que me acalme. Assim, meus acalantos são pouco ortodoxos e incluem Eduardo e Mônica, a Rosa do Pixinguinha, When I'm Sixty-Four ou qualquer outra música que me dê vontade de cantar na hora.
Mas as favoritas são A História de uma Coca:

"Era uma vez um menino que ia caminhando pelo mato, quando encontrou uma coca. Chegando em casa, deu-a de presente para sua avó, que a preparou e comeu. Mais tarde, sentiu fome o menino, e voltou para buscar a coca cantando uma canção:

Minha vó, me dê minha coca
Coca que o mato me deu
Minha vó comeu minha coca,
Coca re-coca que o mato me deu.

A avó, que já havia comido a coca, deu-lhe um pouco de angu. O menino ficou com raiva, jogou o angu na parede. Depois, arrependeu-se e voltou para tomar o angu:

Parede, me dê meu angu
Angu que minha vó me deu
Minha vó comeu minha coca
Coca re-coca que o mato me deu

A parede já havia comido o angu. Deu-lhe então um pouco de sabão. O menino andou e, no caminho,
encontrou uma lavadeira que lavava roupas sem sabão. Ele disse:
- Você, lavando roupa sem sabão, lavadeira, tome este pra você.
No dia seguinte, ao ver que sua roupa estava suja, voltou para tomar o sabão cantando:

Lavadeira, me dê meu sabão
Sabão que parede me deu
Parede comeu meu angu
Angu que minha vó me deu
Minha vó comeu minha coca
Coca re-coca que o mato me deu

A lavadeira já havia gasto o sabão. Deu-lhe então uma navalha. O menino saiu e pelo caminho encontrou um cesteiro que cortava cipó com os dentes:
- Você, cortando cipó com os dentes? Tome esta navalha para você.
O cesteiro ficou muito contente e aceitou a navalha. Dias depois, ao ver que sua barba estava crescida, arrependeu-se de ter dado a navalha (ele sempre se arrependia de dar as coisas) e voltou, cantando:

Cesteiro, me dê minha navalha
Navalha que a lavadeira me deu
Lavadeira gastou meu sabão
Sabão que parede me deu
Parede comeu meu angu
Angu que minha vó me deu
Minha vó comeu minha coca
Coca re-coca que o mato me deu

O cesteiro havia quebrado a navalha. Deu-lhe em paga um cesto. O menino saiu pensando:
- Que é que eu vou fazer com este cesto?
Pelo caminho, encontrou um padeiro que assava os pães e os colocava no chão e deu-lhe o cesto. Depois, precisou do cesto e voltou para buscar o cesto:

Padeiro, me dê meu cesto
Cesto que o cesteiro me deu
Cesteiro quebrou minha navalha
Navalha que a lavadeira me deu
Lavadeira gastou meu sabão
Sabão que parede me deu
Prede comeu meu angu
Angu que minha vó me deu
Minha vó comeu minha coca
Coca re-coca que o mato me deu

O padeiro havia vendido o cesto junto com os pães. Deu-lhe então um pão. O menino andou, andou e, depois de muito andar, não estando com fome, deu o pão a uma moça que encontrou tomando café puro. Mais tarde, sentiu fome e voltou para tomar o pão:

Moça, me dê meu pão
Pão que padeiro me deu
Padeiro vendeu meu cesto
Cesto que cesteiro me deu
Cesteiro quebrou minha navalha
Navalha que a lavadeira me deu
Lavadeira gastou meu sabão
Sabão que parede me deu
Parede comeu meu angu
Angu que minha vó me deu
Minha vó comeu minha coca
Coca re-coca que o mato me deu

A moça já havia comido o pão e, nada mais tendo para dar, deu-lhe uma viola. O menino ficou contentíssimo. Subiu com a viola em uma árvore e pôs-se a cantar:

De uma coca fiz angu
De angu fiz sabão
De sabão fiz uma navalha
De uma navalha fiz um cesto
De um cesto fiz um pão
De um pão fiz uma viola
Dingue lidingue que eu vou para Angola
Dingue lidingue que eu vou para Angola"

Depois da coca, vem a Menininha, do Vinícius de Moraes. Depois, pode ser Chapeuzinho de Maiô.
Se ainda não dormiu, ela pede a história da Aninha:

"Era uma vez uma moça que se chamava Aninha. Ela era tão linda, que o príncipe decidira casar-se com ela. Os pais de Aninha, porém, por serem pobres e camponeses, não queriam dar a filha em casamento a um príncipe. O príncipe. Então, decide roubar a moça. Fazendo-se de pobre e mendigo, bate à porta da casa dos pais de Aninha:

- Eu vos saudo e peço
Uma esmola, Aninna
Pelo amor de Deus
Me ensine o caminho.

E o pai de Aninha responde:

- Se ele chora e pede
Dê-lhe pão e vinho
Diga a Aninha
Que lhe ensine o caminho

- Eu não quero pão
Eu não quero vinho
Eu só quero Aninha
Que me ensine o caminho.

Aninha, então, mostra o caminho ao cego. A certa altura do caminho, já estando a anoitecer, Aninha canta e o cego responde:

- Passe pra diante, cego
- Passe pra diante, Aninha
- Passe pra diante, cego,
Siga o seu caminho

- Passe pra diante, cego
- Passe pra diante, Aninha
Sou um pobre cego
Não enxergo o caminho

- Já larguei a roca
Já larguei meu linho
Passe pra diante, cego
Siga o seu caminho.

Em uma curva da estrada, os vassalos do rei os aguardavam com uma carruagem toda dourada para levá-los ao castelo real. O príncipe, então, tira as vestes de mendigo:

- Se me fiz de cego
Foi porque queria
Sou filho de rei
Tenho bizarria

Os vassalos do rei, então, embarcam Aninha e o príncipe na carruagem. Aninha canta e chora:

- Adeus, minhas casas
Adeus, minhas moças
Digam a mamãe
Que me vou a força

Ao chegar no castelo, uma linda festa está preparada, com muitas flores, muitos convidados, muitos doces. Eles casaram e viveram felizes para sempre.
E o que foi de vidro, quebrou-se
O que foi de papel, rasgou-se
Entrou por uma porta e saiu por outra
O rei, meu senhor, que lhe conte outra."

Nada de muito politicamente correto, porque não acredito nessas coisas. Eu ouvia essas historinhas cantadas, quando criança, em um LP que continha canções e histórias lembrados por uma costureira do sertão baiano, que tinha, na época da publicação do disco, 97 anos. Além de costurar, ela havia estudado música. Assim, pedia às clientes, enquanto tirava as medidas, que contassem suas histórias de infância e cantigas de roda que lembrassem. Depois, registrava tudo, inclusive as partituras das canções.

Alguém sabe o que é uma coca? E o que é ter bizarria?