sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Desejos

É saudável que as pessoas sonhem. Desejem. Até algum grau de ambição, acho saudável. Então eu tenho alguns desejos e ambições também. Desejo mais espaço para morar, mas sem sair da área central. Quero um trabalho que tenha alguma estabilidade. Gosto também de trabalhos em que o idealismo seja algo desejável, não uma característica a ser abolida ou eliminada. Mas também preciso pagar as minhas contas. E sonhos se realizam para quem trabalha por eles. Nem todos os que trabalham por seus sonhos os conquistam (infelizmente). Mas todos os que os conquistam certamente suaram a camisa.
Muito bem. Todos estes prolegômenos para celebrar com os meus caros leitores alguns sonhos a tornarem-se realidade.
Queria uma casa bem grande, bem central e com um lindo quintal. Queria, especificamente, aquela casa, lá onde meus avós moraram e criaram toda a sua (nossa) família.
Eu também havia feito um concurso para a prefeitura. Dois, na verdade. Um por obrigação, meramente para manter meu emprego como médica de família. O outro mirando na pediatria. Um hospital pediátrico, para ser mais exata. Um hospital municipal onde há ensino e pesquisa. Antes de ser municipal, este mesmo hospital cuidou de mim, criança, em mais de uma ocasião. Era do Inamps. Agora é do município. Está meio sucateado, meio empobrecido, mas é um lugar honesto para se trabalhar. Ainda tem os jalequinhos surrados com o logo do Inamps impresso. Muita gente boa que faz um bom trabalho. Muita criançada que precisa de um lugar assim para recuperar ou manter a saúde. O salário podia ser melhor. Mas há perspectivas boas. Há um certo otimismo no ar.

Então, em um período de três semanas, tudo isso aconteceu. A casa dos meus sonhos ficou ao meu alcance. Não sem esforço, é bem verdade. Um esforço que caberia no meu salário de médica de família (junto com o ordenado do marido, lógico). Yabadabaduuu!!!
E aí eu já tinha sido chamada no concurso do Instituto Municipal da Estratégia de Saúde da Família (IMESF), o ganha-pão garantido. E há cerca de 20 dias, chegou o tal telegrama da Prefeitura. Yabadabadu de novo! Demorei bastante para escrever porque ainda estou no meio do turbilhão. O emprego da prefeitura, estatuto de servidor público é muito mais estável e com um plano de carreira muito melhor do que o do IMESF, celetista e com plano de carreira inexistente. Mas sai de um salário menor. Menos horas, é verdade. E no hospital que eu queria. Isso significou, no entanto, pedir demissão do meu posto de saúde, com a minha equipe cinco estrelas, meus girassois na minha sala, os pacientes já conhecidos, minha casinha por quase dois anos. O trabalho de formiguinha, de seguimento, de quase que idealismo puro. Ninguém é insubstituível, logo haverá outro bom colega a cuidar daquela população. Por enquanto, os remanescentes da equipe vão levando com um médico a menos.
Já arrumei outro trabalho para completar a renda. Trabalhos também não são insubstituíveis. Mas já sinto muita saudade da minha carreira de médica de família.
Então esta postagem é para compartilhar o susto, a saudade, os receios e também a alegria de toda essa virada que está a acontecer.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Centro

Hoje tive que ir ao centro. Centro Histórico, está escrito nas placas. Resolvi ir caminhando. Adoro o centro. Dá uma sensação de continuidade da vida. É praticamente uma acrópole. Passei ao lado do Mercado Público, com seu cheiro de peixe inconfundível. Havia o pregador, de bíblia em punho, ameaçando os pecadores com o final dos tempos e o armagedon. Havia os índios peruanos a tocar flauta. Camelôs, malucos e engraxates. Adoro o centro. Um estímulo aos sentidos, ainda mais com o céu azul a contrastar com os prédios antigos e coloridos. Lembrei-me do caminho para a aula de inglês, há 25 anos. Descia do ônibus no Mercado e subia pela Borges até a Riachuelo. Ia ao Cultural. Naquele tempo, existia o Cultural e o Yázigi para estudar inglês. Nós fazíamos Cultural. Os anos 80 eram mais simples. Havia Toddy e Nescau. Lá em casa, tomava-se Nescau. Shampoo Colorama ou Palmolive, condicionador era Neutrox. Protetor solar era Coppertone. Fácil. Sem escolhas, sem frustrações.
Quando tiraram os terminais de ônibus do que hoje chamamos de Largo Glênio Peres, a cidade ganhou um novo espaço. Havia lugar para comícios, panfletagem, músicos e artistas de rua e pregadores. Uma praça seca. Um largo. Amplo. Simples.
O pregador estava na Esquina Democrática. Os peruanos, quase no Chalé da Praça XV. No lugar de todos eles, a Casa do Papai Noel! Uma construçãozinha bisonha, mistura de galpão crioulo com chalé suíço. Com neve de manta acrílica grampeada no telhado, com os 30 graus do quase-dezembro do continente austral. Não deu muito certo. Gente, celeumas à parte, o Centro Histórico não é shopping. Nada contra o espírito natalino. Mas... Esculhamba, mas não avacalha.


***
Joana está com 1 ano e 4 meses. Ela sabe dizer várias coisas, mas o melhor são suas caretas impagáveis. Joana anda impublicável, não por ser censurável, mas por ser indescritível. 
- Bô... - diz ela decepcionada quando algo acaba. Normalmente algo comestível.
- Papaiiii
- Mamaiii
- Sai! - essa ela aprendeu com a Luísa.
- É mé (meu)
- Me dá - outra da Luísa.
- Lulu
- Au-au - significa qualquer bicho que se mova. Quadrúpede, com bicos, penas ou implumes, tudo é au-au.
- Vovó, vovô (ela fala bem direitinho)
- Alô - enquanto segura qualquer objeto (literalmente) encostado ao ouvido, como um telefone. 

Só falta dormir à noite. No mais, sou a mãe mais feliz do mundo.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Dona Firmina

Ontem atendi em consulta a D. Firmina. É uma senhora magrinha, dos seus 67 ou 68. Aparenta mais, com muitas rugas no rosto emagrecido. Contara-me, há cerca de 6 meses, na consulta anterior, que morava sozinha. Trouxera junto uma receita do cardiologista que a acompanha há anos no hospital universitário. D. Firmina tem pressão alta, diabete, colesterol alto e obstrução das artérias do coração. Toma uma porção de remédios:

Captopril 25mg 2 comprimidos 3 vezes no dia;
Hidroclorotiazida 25mg pela manhã;
AAS infantil na hora do almoço;
Isossorbida 20mg meio comprimido 2 vezes no dia;
Sinvastatina 20mg 1 comprimido à noite
Omeprazol 20mg 1 comprimido em jejum
Metoprolol 100mg 1 comprimido 2 vezes no dia
Metformin 850mg 1 comprimido 3 vezes no dia.

É uma prescrição bem complicada. Há remédios duas ou três vezes no dia, alguns a serem tomados pela manhã, alguns à noite, outros em jejum e mais outros com a comida. Se eu tivesse que tomar diariamente essa montanha de comprimidos, certamente seria difícil de lembrar de cada um deles.
Na primeira consulta, notei que a glicose no sangue, medida na pontinha do dedo no posto de saúde, estava alta. A pressão, aferida no grupo dos hipertensos e diabéticos em acompanhamento na unidade semanalmente e anotada em uma tabelinha, mantinha-se sempre acima do desejável. Perguntei sobre a alimentação, sobre atividade física, na tentativa de descobrir o que ia errado. Não comia doces, não adoçava o cafezinho, abolira as frituras e a banha no feijão. Quase nada de sal, disse-me ela. E também parara com o macarrão instantâneo. A nutricionista já havia explicado tudo. Tinha dificuldade de caminhar por conta de dores crônicas nos joelhos. E não tinha dinheiro para pagar uma hidroginástica (sugestão do cardiologista).
- E os remédios, D. Firmina, como está tomando? - perguntei, coçando a cabeça.
- Tomo todos direitinho, doutora. Conforme o doutor do hospital mandou.
- A que horas toma cada um?
- Tomo um de cada pela manhã. Não é assim, doutora? É que não sei ler. Não sei o que escreveram neste papel - apontava para a receita.
Senti uma dor no coração. D. Firmina é o que se pode chamar de paciente aderente. Tem vontade de se cuidar, quer tomar os remédios prescritos. Na medida do possível, faz tudo o que pedimos. Mas recebera uma prescrição que, naquele momento, parecia uma peça de ficção científica. Lógico, como a pessoa iria memorizar o que tomar de cada vez? Peguei o bloco de receituário e caneteei:
captopril, metoprolol e metformin: 2 vezes no dia
Sinvastatina e AAS somente à noite
Omeprazol, isossorbida e hidroclorotiazida somente pela manhã;
E tudo um comprimido só.
Ora bolas! E já achei bem complicado assim. A estagiária de medicina que acompanhava a consulta ficou apavorada. Como eu iria tirar medicações se o controle estava ruim?
Não seria o caso de mandá-la de volta ao hospital para o cardiologista acrescentar mais coisas? Ela teria retorno somente em 4 meses no hospital.
Expliquei a ela que a prescrição mais simples, dividindo os remédios em dois blocos, seria mais fácil de tomar corretamente. E pedira à técnica em enfermagem da farmácia do posto que separasse os remédios por horário, para ficar mais fácil.
Na porta do consultório, na saída da primeira consulta, disse à D. Firmina que havia um projeto de alfabetização de adultos na Biblioteca Comunitára Ilê Ará (http://bibliotecaileara.blogspot.com.br), próximo à Cruz, em cima do morro. Ela deu de ombros, mas disse que iria visitar o local.
Na consulta de ontem, D. Firmina voltou com a pressão muito mais bem controlada. Recebera os parabéns até mesmo do cardiologista do hospital, que manteve a minha prescrição mais simples. Os exames bons e o diabete controlado. Cumprimentei-a pela melhora e, quando a acompanhava até a porta, ela me deu uma abraço e disse:
-Tenho que correr, doutora. Vou lá no Instituto de Identificação.
-Fazer o quê lá, D. Firmina?
-Vou buscar minha carteira de identidade nova. Agora já sei escrever o meu nome. Não sou mais analfabeta.
O Brasil demorou 68 anos para alfabetizar D. Firmina. Obrigada, Biblioteca Ilê Ará!

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Sete dias

Minha cabeça fervilha de ideias neste cinco de novembro. Dia da cultura, do Rui Barbosa e desta que vos escreve. Dei-me de presente duas horas sozinha na Feira do Livro (já mencionei isso antes, a Feira pra mim é melhor que Natal). Livros, livros e livros. Muitas ideias por todos os lados. Cercada de letras. Novidades, velharias, saldos de R$1,00. O final de tarde mais perfeito que alguém já imaginou nesta cidade. O céu azul com umas três nuvens. Uma brisa suave e refrescante. Os jacarandás com muitas flores, mas com um início de primavera verde que brota dos galhos. No final da caminhada na Praça da Alfândega, depois de chegar do Cais do Porto, sentei e comi morangos com creme de chocolate. Uma orquestra tocava uma valsa que me pareceu Chostakovich. Dificilmente o paraíso será melhor que isso. Na subida da Rua da Ladeira, já no caminho para casa, surgiu a metade da cúpula da Catedral, com sua cor marron-cobre a fazer contraste com o extremo azul do céu, a outra metade encoberta pelo cinza-preto do Tribunal de Justiça.
(Fui até o cais, na área infantil, só para ver o rio de pertinho. Recusei-me peremptoriamente a folhear qualquer livro que tivesse algum "pop-up", que emitisse som, ou que se transformasse em qualquer coisa remotamente peluda. Foi um final de tarde de completo egoísmo).
Saí, na verdade, com poucos livros na sacola. Dois do inspetor Maigret, que ainda não tinha, um inédito do Petit Nicolas, e um livro sobre o Fusca. Ganhei mais livros de presente de aniversário. Obras de ficção deliciosas que não sei quando conseguirei ler. Acho que vou voltar a ir para o trabalho de lotação, pois conseguia ler ao menos umas três páginas em cada trecho. Fora a parte politicamente correta.
Minha maior fantasia era que o mundo parasse para todos os outros. Congelasse durante, digamos, sete dias. Para todos, exceto eu. Já pensou? Sete dias para ler todos os livros que já comprei? Toda aquela montanha de conhecimento e prazer que espera uma pausa sem a sonolência perene? Um momento em que não haja a culpa de não estar dando a devida atenção para alguém. Sete dias de completo egoísmo literário. Na minha fantasia, eu não precisaria dormir, estaria sempre repousada e feliz, com um semblante tranquilo. Teria sete dias para ler. Somente ler seria necessário. Não haveria internet, televisão, celular. Comida pronta, casa organizada, nada para limpar ou fazer. Ninguém para atender. Nenhuma tarefa. Todos dormiriam em segurança e eu saberia que iriam acordar dentro de sete dias. Sem preocupações. Para os que dormissem, só teria se passado uma noite. Mas eu teria ganhado montanhas de conhecimento. Quem sabe eu poderia botar o sono em dia dormindo na fantasia de outra pessoa.
Falta meia hora para terminar o meu aniversário. Joana já deu o ar da graça, o marido ainda circula pela casa. Por enquanto, meu desejo é apenas um desejo. Tenho a esperança de que amanhã o rádio-relógio não despertará. O barulho dos carros terá cessado. Os cães dormirão, assim como os flanelinhas, os sabiás e outros habitantes barulhentos do meu bairro. Eu serei despertada pelo silêncio completo. E então, passado o susto e certa de que, com todos a dormir não preciso ir trabalhar, chegarei na minha estante e pegarei cada volume empoeirado e degustarei cada frase. A cada duas horas, poderia levantar, esticar as pernas, ouvir uma música, fazer alongamento. E de volta à leitura.
Não imagino nada trágico, como uma série de TV chamada "O Mundo Sem Ninguém", que mostra imagens fantasmagóricas de Chernobyl para ilustrar o que ocorre quando os homens vão-se embora. Não haveria Torre Eiffel desabada nem represas desassistidas. O mundo simplesmente estaria parado. E as pessoas tranquilamente adormecidas.
Pensando bem, acho que gostaria de várias temporadas fantásticas de mundo parado. Uma para ler, outra para organizar minha casa, mais uma para terminar todos os trabalhos manuais que já comecei e nunca acabei (acho que essa temporada teria que durar mais de uma semana). Não daria para ser tudo junto, pois sentiria, ao fim e ao cabo, muita falta das pessoas. Nunca tive vocação para a solidão. Poderia ser uma semana por ano. Já pensou?

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Um ano de coisas de míope

Há um ano comecei este blog. É quase o meu diário. Reli algumas das postagens do início, aquele tempo em que eu escrevia diariamente (ainda escrevo quase diariamente, mas há textos que são impublicáveis). Lembrei-me das coisas de míope do Machado de Assis:

Como diria o Machado de Assis, "enquanto o telégrafo nos dava notícias tão graves (...) coisas que entram pelos olhos, eu apertei os meus para ver coisas miúdas, coisas que escapam ao maior número, coisas de míopes (...)
Acho que este blog é um pouco sobre coisas de míopes, coisinhas miúdas da vidinha privada de cada um de nós.
Coisinhas de míope das minhas menininhas que quero compartilhar com quem gosta das menininhas.

Compartilho então algumas coisinhas delas:
1. Joana já caminha, embora prefira engatinhar.
2. Luísa dorme sem bico há 6 dias (foi comprada por uma porção de quinquilharias que a "fada Clarabela" traz quando ela dorme sem o bico. Não sei como vou encerrar este negócio de fada)
3. A maior alegria da vida da Joana é caminhar de mão com a Luísa.
4. Luísa consegue pintar com lápis de cor respeitando os limites das linhas do desenho. E desenha figuras humanas perfeitamente identificáveis. Praticamente a reencarnação do Picasso.
5. Joana já fala mais de dez palavras. Seu maior divertimento é tirar todos os livrinhos da prateleira e jogá-los ao chão.
6. Elas estão lindinhas, não é por ser mãe delas...

E minha função de plantões encerra-se amanhã. Volto a ter vida de pessoa. Já pensou, fazer as unhas?
E à demain, que eu sigo em frente

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Fotos Antigas

Achei, dia desses, uma caixa de fotos antigas dos meus avós paternos. Por contingêcias da vida, não convivi tanto com eles como gostaria. Sei bem menos sobre suas histórias do que acho que deveria saber. Então, encontrar todas aquelas fotos foi ótimo. Descobri coisas fascinantes. A maioria das fotos se localiza no tempo entre 1923 e 1941. Já sabia que o vô, antes de ser médico (ele era pediatra), havia sido do exército. Mas não sabia que ele tinha ido ao Rio de Janeiro no trem do Getúlio Vargas em 1930 para amarrar os cavalinhos no obelisco, na Revolução. Tampouco sabia que ele havia lutado na campanha de 1932, em São Paulo. Há uma foto dele de barba, com cara de cansado, com a farda meio esfarrapada. Cara de veterano de batalha. Ele era oficial e aparece fardado em quase todas as fotos desta época. Gostava de fotografar. E ambos adoravam viajar. Há dezenas de fotos dos dois, individualmente e como um casal, em viagens. Foram por todo o interior, a Buenos Aires, adoravam o Rio de Janeiro. Fotos certamente históricas de todas essas cidades. Inclusive de Santa Maria, cidade onde ambos moravam e onde casaram e tiveram os filhos.
Mas o fascinante destas fotografias é que elas são, na maioria, fotos deles solteiros, antes dos filhos. Ao contrário de grande parte dos jovens da época, meus avós casaram-se tarde. Já passavam dos 30 anos. Além disso, a vó era mais velha que o vô. Isso, aparentemente, era um grande problema, pois ela fez uma mutreta no seu registro civil e rejuveneceu uns 3 anos. E o vô já havia envelhecido um ano, pois desejava ingressar no exército logo. Ela trabalhava em uma loja. Há um registro desta loja, com todas as funcionárias atrás do balcão, arrumadas e sorridentes. A vó entre elas. Parecia artista de cinema, de tão lindinha.
Eles tivera um longo período de juventude solteira, com muitos passeios, muitas fotos alegres em pracinhas, na saída da missa e durante o "footing" do final de tarde, com algumas "girls", segundo as legendas que o vô escrevia nas fotos. Várias fotos de lambe-lambe, o vô de farda e a vó com aqueles vestidinhos que elas usavam nos anos 1930. Sempre arrumadinhos. Os cabelos, as roupas, os chapéus. Ninguém saía na rua com coisas casuais, como calça jeans e camiseta. Era roupinha ajeitada, fatiota, sapato social, bolsinha e chapéu.
Na mesma caixa, havia o convite para a formatura do vô. Ele se formou na mesma faculdade de medicina onde eu estudaria e concluiria o curso exatamente 61 anos depois. Fiquei com uma nostalgia doída, uma coisa apertada, de não poder compartilhar com ele as idas e vindas da medicina e da pediatria em todos esses anos. Fiquei a ver os registros da ATM 1941 e a pensar em todos os lugares que ele andou e que eu também andei, seis décadas depois. Olhei as minhas fotos da ATM 2002/2. Incríveis semelhanças entre jovens futuros médicos das décadas de 1930 e 1990. Algumas diferenças, como o número de mulheres. Mas aquelas fotos de escadaria, todos de jaleco branco, são absurdamente iguais. Os olhares confiantes de quem iria mudar o mundo e salvar vidas todos os dias.
Agora, na véspera do dia do médico, estou em casa, guardada por Deus contando o vil metal. E salvando vidas. Mas sem o heroísmo e sem todo aquele glamour da época do footing e das girls.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Historinhas

Meus avós tiveram uma vida pacata e tranqüila, ao menos na época em que eu me lembro deles. Mas nunca deixaram de ter senso de humor. O anedotário da familia inclui historinhas prosaicas. Algumas bonitinhas.
A Wó era talvez a pessoa mais gentil que eu conheci. Incapaz de uma grosseria ou de qualquer ato que pudesse trazer prejuízo a quem quer que fosse. Mas nunca foi trouxa. Uma vez, foi comprar uma carne para o almoço. Estava pensando num pedaço de alcatra ou que sabe um coxão de dentro. Na fila do açougue, a mulher na sua frente pediu um pedaço de filé mignon. O rapaz mostrou a ponta da peça que já estava aberta.
-Ah, não, não vou querer a ponta. Não podes abrir outra peça?
-Não, senhora, só posso abrir outra quando esta acabar.
-Então vou esperar alguma outra pessoa comprar a ponta para comprar o inicio da outra peça.
A Wó não gostou daquilo. Não achou direito esperar o próximo trouxa comprar a parte que ela não queria para ela ficar com o bem bom. Mas, sendo ela uma senhora de fino trato, não iria bater boca com a mulher. Chegando a sua vez, falou decidida:
-Vou querer o filé mignon - a outra já se alegrou.
-A ponta? -perguntou o açougueiro.
-Não, senhor, vou querer uma peça inteira.
A outra cliente fechou a cara, mas não pode dizer nada. Deve ter sido um certo rombo no orçamento da semana, mas com certeza valeu cada centavo. Após embrulhar o filé inteiro para a Wó, o açougueiro virou-se para a cliente espertinha e perguntou:
-E aí, dona, vai querer a ponta? Porque a outra freguesa levou a última peça inteira. Só sobrou essa pontinha...
A Wó não ficou para ouvir a resposta. Havia sido suficiente. Saiu do açougue triunfante. E a familia comeu filé a semana inteira.

Do vô, a que eu mais gosto é a da xícara de cafezinho do Tribunal de Justiça. Ocorre que a Wó colecionava xícaras de cafezinho. Era linda, a coleção. Tinha umas chinesas, com uns desenhos no fundo, outras de bancos ou de viagens que as pessoas faziam e levavam para ela como souvenir. Um dia o vô, tratando de algum assunto causídico no Tribunal de Justiça, tomava seu cafezinho e passou a observar a xícara. Perguntou ao interlocutor, algum juiz importante que certamente havia sido seu aluno na Faculdade de Direito (a Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre, ele diria):
-Escuta, o que aconteceria comigo se eu, acidentalmente, deixasse cair essa xicrinha no chão e ela quebrasse?
-Oh, não aconteceria nada, acidentes acontecem.
-E se eu deixasse a xicrinha cair acidentalmente no bolso do meu paletó? - perguntou antes de explicar que sua senhora colecionava as tais xícaras.
O desembargador riu e, evidentemente, deu o objeto de desejo para ele.

A xícara está na cristaleira da minha casa. Olho para ela e me lembro dessa historinha prosaica. Recordei-a e quase enxerguei o vô a chegar na sala da casa, sentar-se no sofá abaixo da enorme imagem do Sagrado Coração de Jesus e, tirando a boina da cabeça, dizer:
-Estou pregado! Bebel, me traz meio copo d'água e o pinga-pinga verde? E a atensina, que está em cima do bureau. Depois, pedia para alguém (provavelmente eu mesma) levar os sapatos para cima e trazer os chinelos de couro que ficavam na mesinha de cabeceira. E o relógio da varanda estaria batendo cinco horas.
Ui, doeu a saudade.

sábado, 29 de setembro de 2012

Musiquinhas

Quando eu era criança, meus pais tinham o estranho hábito de cantar umas músicas que ninguém mais conhecia. Nada que tocasse no rádio. Algumas eram até conhecidinhas. Mas eram aquelas canções que a gente ouve outra pessoa cantarolar, sem nunca ter escutado qualquer versão gravada.
Por puro diletantismo, me botei a catá-las no YouTube. Descubri, para a minha imensa surpresa, que elas foram gravadas em algum ponto obscuro da história musical brasileira. E que, mais do que isso, que alguém se deu o trabalho de publicar no YouTube.
Achei engraçado e resolvi compartilhar com vocês.
Playlist infância bizarra:
1.

2.

3.

4.

Talvez fosse por isso que as outras crianças da minha aula me achassem estranha. Ou talvez porque eu sou estranha até hoje. Só tenho mais auto-confiança. Já pensou, entrar na sala da sexta série cantando a da pumpumpum?

Tem outras, mas achei que estas eram as principais. Fora a do Bolinha, que é bem conhecida, alguém mais conhecia as outras?

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Boa Nova

Normalmente, quando escrevo sobre meus pacientes, é para contar alguma coisa medonha. As coisas horríveis que espantariam Nelson Rodrigues. Famílias despedaçadas, mães em prantos convulsos, filhos presidiários, maridos violentos, crianças abandonadas, idosos negligenciados.
Hoje foi diferente. Atendi um bebê de 19 dias. Limpinho, em aleitamento materno exclusivo, família nuclear tradicional. Quarto garoto de um casal unido há 15 anos.
- E os outros filhos, Suzana, como estão com o novo bebê? - perguntei.
- Estão bem, doutora. O de três anos às vezes sente ciúmes, mas vamos conversando com ele, nada fora do   normal. O de 13 me ajuda bastante.
- Como ele está? - Já havia atendido o menino há algumas semanas, pouco antes do nascimento do Pedro, com gripe A.
- Tudo bem agora. Muito entusiasmado com a viagem.
Perguntei sobre a tal viagem, imaginando algum campeonato esportivo no interior ou coisa parecida. Então Suzana me contou que o filho de 13 anos, aluno da sétima série, gostava muito da escola. Havia há alguns meses participado de um concurso de redação entre crianças moradoras do Morro da Cruz. Foram selecionados os dez melhores textos, cujos autores foram contemplados com uma viagem para a Itália para conhecer os locais por onde passaram os pracinhas brasileiros que lutaram na II Guerra Mundial. Seu menino foi um deles. Ela conversou com o filho, explicando que era uma oportunidade única, visto que a família de seis pessoas sobrevive com menos de dois salários-mínimos. A avó referia muito medo do avião. Mas no final, o garoto decidiu ir. Embarcam no mês que vem. Uma professora está dando aulas de italiano voluntariamente para as dez crianças. Ganharão uniformes e agasalhos para o outono mediterrâneo. E já leram tudo o que encontraram sobre a campanha da FEB durante a Guerra. Conversaram com veteranos, viram fotos. Os olhos da mãe brilhavam ao contar sobre os preparativos.
A consulta do Pedrinho foi ofuscada pelo sucesso do primogênito. O Pedrinho está muito bem, fofinho, bem cuidado, com bom ganho de peso e muito saudável.
Saí do consultório com um sorriso de orelha a orelha. Contei para todo o posto. Só o fato do Pedrinho pertencer a uma família ajustada e normal, sem nenhum drama terrível, já é quase um espanto. Mas o irmão do Pedro ir para a Itália beira um conto de fadas. Este menino mora em um dos bairros mais violentos de Porto Alegre. Conheço muito bem essa violência, pois ela invade a vida de muitos dos meus pacientes. A de quase todos. As escolas não são muito boas. Não há muitos parquinhos para os pequenos. Não há creches em número suficiente. Existe uma promiscuidade entre o tráfico e a comunidade. Há, sim, muita gente do bem. Gente como a família de Suzana. Que trabalha, educa os filhos, manda-os à escola e, uma vez na vida, recebem um presente como este.
Mas o maior presente é esse garoto de 13 anos. Garoto que gosta da escola, não se mete em confusão, ajuda os irmãos menores e só quer saber de melhorar de vida. Pelo caminho certo.
Genial.
http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/geral/noticia/2012/08/estudantes-do-morro-da-cruz-vao-conhecer-a-italia-3861178.html

domingo, 26 de agosto de 2012

Formatura

Neste final de semana, fomos à formatura da afilhada do marido. Formou-se em Educação Física em São Gabriel. Viajamos ao evento, mas Joaninha ficou com a vovó no Portinho porque achei que era muita coisa. Para ela e para mim.
Formaturas são sempre mais ou menos parecidas, seja na Sorbonne ou na Urcamp de São Gabriel. Jovens lindos e maquiados, cheios de sonhos e de boas intenções, pais e avós com lágrimas nos olhos, discursos, protocolo, beca, chapéu. Há quem considere meio brega, toda aquela pompa. Acho até que é meio brega, toda essa pompa. Mas é bonito. E o povo se diverte.
Por motivos de Luísa, não pudemos ficar muito na festa. Apenas comemos e saímos meio fugidos, pois a pobrezinha estava morrendo de sono. Mas o baile prometia. Salão decorado, meninada de vestidão ou de gravata. Buffet preparado, bebida liberada. Todo mundo animado.
O primeiro membro da família a colar grau foi ele, o marido. Mas o fez em gabinete, com todos ausentes, exceto a que vos escreve. É que o marido é anti cerimonialista. Não se agrada de grandes eventos, sobretudo quando o homenageado é ele próprio. Desta forma, o sogro e a sogra foram na formatura da neta mais velha e puderam orgulhar-se e emocionar-se pela primeira vez.
Eles próprios não puderam estudar muito quando jovens. Precisaram trabalhar muito cedo. Mas trabalharam e conseguiram dar aos filhos o estudo a que não tiveram acesso. Dos quatro filhos, um formou-se em Direito, os outros têm o ensino médio. Dos cinco netos, acabaram de formar a mais velha, aos 22 anos, oradora da turma. E os outros prometem. Provavelmente foi a primeira das cinco formaturas de que poderão orgulhar-se.
A família, da região das Missões, fretou um ônibus para ir a São Gabriel. Chegaram pouco antes da colação de grau e deveriam partir após ou durante o baile. Preocupado com os pais, idosos, que poderiam ficar cansados até as altas horas da madrugada à espera do ônibus, o digníssimo ofereceu nosso quarto no hotel para eles descansarem um pouco até a hora de partir.
- Que ir pro hotel, guri, a gente quer dançar! - disse a sogra, surpresa com a preocupação do filho.
Assim, fomos nós, os idosos pais da Luísa, para o hotel descansar às dez e vinte da noite. Descansamos muito bem, diga-se de passagem, ao contrário da vovó, que ficou na companhia da Joana. A Joana gosta de dançar. No colo, claro, de madrugada. A vovó dançou. Eu dormi morrendo de saudade da Joana, sem saudade da dança da madruga.
Antes que eu seja mal interpretada, a formatura estava linda. Eram apenas oito formandos. Assim, a colação durou cerca de uma hora (ao contrário da minha, que prolongou-se por torturantes quatro horas e meia). Tudo preparado com muito bom gosto. A formatura em si não foi brega. O conceito de formatura é que é meio brega. Mas é bonito. E o meu sapato era lindo.

sábado, 18 de agosto de 2012

Caros Amigos

Tem tanta coisa que eu quero escrever, tem tanto livro que eu preciso ler e tantas coisas necessárias de serem feitas, que eu precisaria viver uns 200 anos para chegar na metade. Esse é o problema da nossa época. Acho que há uns 400 anos, todo o conhecimento escrito que alguém que tivesse a sorte de saber ler poderia adquirir em toda a vida deve ter sido menor do que a Folha de São Paulo dominical. O tempo teria que parar uns meses (para os outros, lógico) para eu poder botar em dia todas as minhas leituras e escritos.
Porque além da minha vidinha intelectual e virtual, tem a de verdade. O trabalho, as filhas, o marido, o resto da família, amigos, etc., não necessariamente nessa ordem. Alfred Doolittle, um vagabundo convicto, personagem de My Fair Lady, aquele musical adorável com a Audrey Hepburn, dizia que já tinha trabalhado por um tempo, para se ocupar.
- Não vale a pena - dizia ele no filme - ocupa todo o seu dia.
Pois é, meus dias andam ocupados. Espero que seja temporário, pois a Operação Inverno vai terminar um dia, e eu voltarei a ter uma carga horária um pouco mais próxima do razoável. Por enquanto, minhas postagens andam cada vez mais raras. Não por falta de vontade. Muitas vezes, tenho até inspiração. Escrevo mentalmente no banho, antes de pegar no sono, em algum momento de calmaria no trabalho. Não sei se isso parece loucura, mas é o que acontece. Só que não tem dado tempo de escrever de verdade. E meus escritos mentais são etéreos e passageiros. Eles vão-se como vão-se as pombas dos pombais, apenas raia sangüínea e fresca madrugada.
Tudo isso para justificar as minhas ausências.
Faz-se tarde. Trabalhei 12 horas sem parar muito. Atualizei algumas tarefas da especialização à distância (tem isso, ainda). Além de todo o resto. Escrever hoje era uma questão de honra. Agora posso dormir, honrada e exausta. Se a Joana deixar, lógico, e se a Luísa não tossir muito.

domingo, 5 de agosto de 2012

Panis et Circensis

Fui ao circo na semana passada. É bem verdade que muita gente considera o Cirque de Soleil um espetáculo à parte, algo que supera o circo em si, daquela imagem que temos do inconsciente coletivo, com leão, cachorrinhos adestrados, palhaço e trapezista. O circo da música que a Nara Leão cantava é diferente do Cirque du Soleil. E certamente mais barato. O caso não é esse. Quem inventou o Cirque du Soleil, lá no Canadá, inventou mesmo um conceito totalmente diferente do imaginário popular do circo do filme do Dumbo. Mas, ao fim e ao cabo, é um circo. Com palhaço, trapezista, malabarista, equilibrista, famílias com crianças que fazem parte do espetáculo. Só não tem mais os bichos,  felizmente. Porque sempre achei o negócio dos bichos uma tragédia. Para que bicho, se a gente pode se vestir de bicho? E a gente não precisa dormir numa jaula. Eu sei, o negócio dos bichos já vem lá da Roma antiga, do coliseu, passando pela Europa medieval, quando tinha urso a dançar valsa e tudo o mais. Mas o Cirque du Soleil elevou tudo isso a um novo patamar. Lugar comum, o que eu vou escrever, vale cada centavo da fortuna que paguei pelo ingresso. Valeu toda a gincana para conciliar o vôlei do marido (eles jogam vôlei nas quintas de noite, dia de ir ao circo), plantões, crianças, equipe de apoio para cuidar delas, etc. Valeu cada segundo em que eu estava dentro daquela tenda mágica azul e amarela, com um universo paralelo que aconteceu durante duas horas. No final, enquanto dirigia para casa, depois de deixar minha tia, companheira de ir ao circo, fiquei a pensar que existem pessoas cuja profissão é produzir beleza. Há engenheiros, médicos, professores, caixas de supermercado, juízes, advogados, operadores de tele-marketing e jornalistas. Há lixeiros, arquitetas, empregadas domésticas, enfermeiras, dentistas, filósofos, comerciantes, bancarios, assistentes sociais. Todos e todos os outros que não citei ocupam-se de coisas úteis e fundamentais para o bom funcionamento da sociedade (com exceção do tele-marketing,  que não serve para nada, embora seja um emprego honesto). Mas quem bola um espetáculo como o Varekai é alguém cuja ocupação principal é produzir e mostrar o que é lindo. Alguém que pensa em como fazer o espectador virar um colibri lá pelas tantas do espetáculo. Sei que o caminho para se chegar ao belo absoluto não é belo. Bailarinas, bem como poetas, músicos e outros artistas, também dedicam-se a produzir o belo. Pé de bailarina sem sapatilha de ponta não é belo. É feio, fedorento e doente. É o preço que se paga. O nascimento da borboleta é sempre sofrido. Mas a borboleta é linda. O Cirque du Soleil é lindo. E eu virei um colibri. O estado de êxtase não passou bem. Comprei programa para saborear as páginas e lembrar devagarinho de cada pedaço de magia. O YouTube ajuda também. 


Falar em lindo, achei um livro gracinha na livraria, dia desses. Chama A Caligrafia da Dona Sofia. É sobre uma professora aposentada que escreve com sua linda letra trechos de versos que ela ama por toda a sua casinha, pelas paredes, por tudo. Ela acha que os versos precisam ficar à mostra para serem lidos. Dentro dos livros, correm o risco de serem esquecidos. Um livro infantil escrito por um sujeito chamado André Neves.  Merece ser lido e pendurado na parede. Por adultos e crianças.

domingo, 29 de julho de 2012

Vidinha

Cheguei há pouco do plantão. Não é muito bom prognostico, isso, para um início de postagem. Tudo correu tranqüilamente, só não foi melhor porque não teve nhoque no almoço. (dia 29, dia do nhoque da sorte, lembram?)
Fiquei tristonha com um menininho de cabelos cacheados, 1 ano e 2 meses, desacompanhado no seu bercinho. Não chorava, o anjo. Ficava ali, quietinho. Os olhinhos parados. Às vezes, balançava-se de um lado para outro, num movimento autômato. Recebia sua mamadeira, segurava-a sem nenhuma ajuda, acostumado a alimentar-se sozinho. Havia 16 crianças internadas na emergência no início do plantão. Isso inviabiliza qualquer tentativa de dar atenção extra para quem quer que seja. Há simplesmente coisas demais para se fazer. Mas cada vez que eu passava pelo berço, me dava um aperto no coração. Quase chorei. Só não chorei porque não deu tempo.
As enfermeiras me passaram o caso. A jovem mãe, seus 16 ou 17 anos, estivera havia dois dias, no inicio da internação. Mas tinha um bebê pequeno, de um ou dois meses. Não tinha apoio familiar. Deixou o mais velho sozinho no hospital. Fiquei a pensar se voltaria. O serviço social já fora contatado, mas nada funciona no final de semana. Então o garotinho de cabelos cacheados permaneceu sozinho no hospital. Recebendo oxigênio, sorinho na veia, antibiótico, nebulização. Sem choro. Quietinho.
Lembrei-me dos relatos de pediatras mais velhos. Do tempo em que as mães não podiam ficar com seus filhos enquanto estavam hospitalizados. As crianças ficavam ali sozinha, um berço do lado do outro, com enfermeiras a cuidá-las, sempre muito ocupadas. Choravam até acabar todo o choro que tinham dentro de si. E então paravam. Ficavam parados, o olhar perdido. Não reagiam. Desenvolviam, eles também, movimentos autômatos, como o balançar-se para frente e para trás do garotinho dos cabelos cacheados. De tão comuns, estas reações tinham até nome na literatura médica: hospitalismos. Indicavam, assim como nas síndromes do espectro autista, uma desconexão com o ambiente. Já tinham passado da fase do choro. Muitas crianças hospitalizadas paravam de comer e de aceitar leite. Recebiam apenas a hidratação pela soro da veia. Perdiam peso, ficavam desnutridas e custavam muito a melhorar. Às vezes não melhoravam. E a mortalidade infantil no Brasil beirava os 200 por mil nascidos vivos.
Felizmente este tempo acabou. Hoje, a presença dos pais é, não somente permitida, como exigida nos hospitais pediátricos. Winnicot e os bebês da Segunda Guerra já nos ensinaram há muitos anos que não existe criança sem mãe. As crianças melhoram mais e mais rapidamente, alimentam-se melhor, sorriem mais e têm alta mais cedo quando acompanhadas. Crianças precisam de afeto na mesma medida que precisam de todo o resto.
O menininho de cabelos cacheados foi transferido para o andar de internação. Ficou longe dos meus olhos, mas pensei nele o plantão inteiro. Ele precisava muito de colo, tanto quanto do tratamento.
Cheguei em casa e fui recebida pelas minhas menininhas, que ganham muito colo. São sapecas, mimadinhas, choram, fazem manha. São normais. Graças aos céus. Descobri, novamente, que meu maior medo de mãe é não estar lá para elas. Hoje passei o dia longe, mas cheguei. Mais um dia em que me reuni com a família no final do dia. Uma benção.

domingo, 22 de julho de 2012

Mais cartas

Na última reunião de família, mais cartas antigas foram compartilhadas. Desta vez, a correspondência do vô com seus parentes da Alemanha no pós guerra imediato. Há uma carta em especial que chamou mais atenção. É uma carta que pede comida. Basicamente, diz que toda a família passava fome e imploravam para que mandassem comida. Pegar naquelas cartas, no original, me deu arrepios. É um simples pedaço de papel, mas por si só já diz muito. Primeiro, as cartas procedentes da Alemanha derrotada só podiam pesar 20g. Assim, cada milímetro do papel era aproveitado. Eles escreviam em alemão gótico, frente e verso, sem margem nem parágrafo. Acrobacias para traduzir.
Não me recordo em que cidade moravam aquelas pessoas, mas fiquei a imaginar a senhora a escrever à luz de velas, após os filhos estarem deitados, sem luz elétrica no país arrasado pela guerra. Não havia gasolina, nem eletricidade, gás, comida, nada. A primeira carta chegou ao Brasil em setembro. Havia sido postada em junho. Não havia correio aéreo da Alemanha para cá. Logo em seguida, chegam outras cartas perguntando se haviam recebido a primeira, pois passavam muita fome. Ela descreve a fome. Havia batatas. E pão. E água. Pouco de cada coisa. Sem carne, frutas, verduras, leite, ovos, chocolate, açúcar. Sem proteína. Seu marido, médico, trabalhava em um consultório a 30km de casa. Por não haver combustível, ia de bicicleta, nutrido por sua dieta forçada de menos de 1000 kcal por dia. Já emagrecera 15kg.
Sei, por ouvir meu avô contar, que o primeiro pacote de comida chegara próximo do Natal de 1945. Cerca de seis meses depois da capitulação da Alemanha e do envio da primeira carta. O vô conhecia todos eles pessoalmente. Estivera na Alemanhs fazia menos de dez anos.
Nos alfarrábios do vô existe também a lista das coisas que foram mandadas. Aparentemente, existia um serviço especializado em enviar kits de alimentos para a Europa arrasada. Com catálogo e tudo. No Canadá. O vô mandou uma carta para uma empresa canadense encomendando uma caixa de comida para a família que morava na Alemanha. Ovos em pó, frutas em calda, salmão defumado, leite em pó, leite condensado, chocolate, sardinha em lata, carne salgada, embutidos e qualquer outro item imaginado que tivesse proteína. Além de arroz, feijão, café, farinha, etc.
Fiquei muito aliviada ao ler que eles detestavam os nazistas. Tiveram que agüentar para não serem presos. Mas deram graças aos céus quando o déspota finalmente se foi.
A correspondência com este núcleo familiar durou até os anos 1980, quando a matriarca morreu. Não sei se seus descendentes têm alguma idéia que a família sobreviveu com a ajuda de brasileiros de origem alemã que mandaram enviar comida canadense de avião para a Alemanha. Um dia eu pego um avião, vou até lá e conto para eles.

Quase 70 anos depois, do outro lado do oceano, minha filhinha completou um ano. E ninguém passou fome na festinha (era o meu temor secreto que não desse tempo de encomendar as coisas e os convidados não tivessem o que comer). Brigadeiros feitos em casa, bolo feito pela vizinha, tudo bem caseiro. Os salgados foram Totosinho, porque trabalhando 60 horas por semana, foi o que deu para fazer. Salão decorado pela equipe de apoio com as coisinhas que comprei pela internet. O tema da festa foi joaninhas, lógico. Acho que deu certo. Mas cansei. Sou boa de ter idéias ótimas, mas foi a primeira vez que executei sozinha (ou quase) um evento. Mesmo que só para os íntimos. Que bom que é só um aniversário por ano. Pra cada uma.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Beatles

Achei no meio da tralha a fita k7 que ganhei quando descobri os Beatles. Eu me lembro quando descobri e tomei consciência da sua existência. Quase a sensação que Howard Carter teve ao entrar na tumba de Tutankamon pela primeira vez. Quase.
Tinha uma novela das sete (obviamente não me lembro o nome), que tocava uma versão em português de Hey, Jude. Era qualquer coisa assim:

"Hey, Jude, Não fique assim
Sabe a vida ainda é bela a a a
Esqueça de tudo o que aconteceu
Amanhã será um novo dia (...)"

Não lembro do resto da letra. Eu a achava bonita, aos 12 ou 13 anos. Dona Ilka, a professora de música, arranjou as cifras para eu tocá-lá no violão. Acho que foi minha mãe quem me ouviu tocar e me falou que aquela era uma versão traduzida do original dos Beatles. Eu sabia que os Beatles existiam, já tinha visto discos de vinil em casa. Mas nunca tinha me ligado naquilo. Fazia parte daquele caldo cultural inconsciente em que estamos metidos desde o nascimento, sem nunca prestar muita atenção. Aí, ouvi o negócio em inglês. Achei sensacional a voz do Paul McCartney. Nunca tinha escutado nada igual. De repente, achei aquele universo novo de música de "gente grande". Mas que não era chata. Senti uma vontade danada de ter nascido em outra época, só para ter feito parte do fenômeno em tempo real. De uma hora para outra, tudo o que falava em Beatles, sobretudo John Lennon, passou a me interessar. Desencavei todos os discos que tinha em casa, que se resumiam ao Abbey Road, Revolver e o Sgt Peppers. Escutei tudo muito atenta. Sgt Peppers era, definitivamente, meu favorito. Na carona veio Paul Simon e, mais adiante, Rolling Stones. Mas os Beatles era tudo de bom.
E aí alguém me deu a tal da fita k7. Era uma coletânea com umas 20 faixas. Eu escutava uma vez atrás da outra, de tal maneira que decorei a seqüência das músicas. Minha mãe tinha um precursor dos toca-fitas portáteis, uma geringonça que era enorme para os padrões atuais, mas cabia na minha mochila. Só não tinha fone de ouvido. Daí não dava para ouvir no ônibus. Mas eu carregava o trambolho comigo e ouvia sempre que podia. Até que me deram um walk man, o avô do iPod. Com os respectivos fones de ouvidos. Escutava a fita dos Beatles non-stop.

(Me recordo de uma amiga da família que costumava chamar os fones de ouvido de "egoistinhas", porque a música ficava egoisticamente com o detentor dos fones. Pergunto-me se a atual parafernália de som de alguns carros não deveria ser chamada de "egoistão", já que obriga o bairro todo a escutar o mesmo barulho, quase sempre medonho)

Quando vi a fita k7 ontem de tarde, senti novamente o sabor da descoberta. Todos aqueles sentimentos de deslumbramento voltaram, como se estivesse a escutar pela primeira vez Yesterday (era a que eu mais gostava, voltava a fita para escutá-lá novamente). Quase um achado arqueológico. Quase. A fita ainda funciona. E há (pasmem!) um toca-fitas no quarto das crianças. Durante uma hora, tive doze anos novamente.

http://www.youtube.com/watch?v=wM0IDLAntVM&feature=youtube_gdata_player

***

Hoje foi dia de visita domiciliar. Dia de subir o morro um quilômetro lomba acima e ficar de língua de fora. Visitamos uma velhinha acamada que mora em um casebre mais ou menos horrorosinho. Possivelmente chove para dentro. É úmido e gelado, além de mal iluminado. Enquanto esperava a verificação dos sinais vitais da senhora, espiei pela janelinha da porta da cozinha. A maloca tem uma das vistas mais maravilhosas que já vi na cidade. Quem diria?

sábado, 30 de junho de 2012

Pediatria

Cheguei há pouco do plantão pediátrico. Desde a gravidez da Joana, há quase dois anos, não fazia plantão de pediatria. Hoje, voltei à ativa. Não que a medicina de família não seja atividade, muito antes pelo contrário. Mas sou pediatra por formação e, acredito, vocação. Fui monitora do Departamento de Pediatria durante 4 dos meus 6 anos de faculdade. É o que eu gosto de fazer.
A emergência estava um pouco parecida com Bagdá durante a guerra do Iraque. Ou com a Bósnia há vinte anos. Alguma coisa assim. Trinta e tantas crianças onde caberiam vinte, crianças que chegavam em ritmo frenético. Vi todas as que me competiam, tentando dar alta para alguém, mas não foi possível. Entre as tentativas de alta, estava uma criança que completara um ano há poucos dias. A festinha era hoje. O bebê necessitava de oxigênio, nebulização a cada 2 horas. Seu pulmão estava com a ausculta muito alterada e a radiografia era apavorante. A criança não estava bem. Respirava com dificuldade, mesmo com oxigênio. Parecia um pouco prostrada. Mas o único pensamento dos pais era a festa. O salão alugado, os balões, os doces, o bolo, a bisavó de 96 anos que viera do interior para conhecer a bisneta. Expliquei a eles que poderíamos arranjar para a bisa entrar na emergência e visitar a menina. Mas não poderia dar alta para uma criança tão doente. Tentei argumentar que a saúde e a segurança do bebê vinham em primeiro lugar, que seria arriscado sair do hospital, que ela necessitava de oxigênio. Não teve acordo. Para eles, nada importava mais do que a festa. O salão. O dinheiro que haviam gastado (provavelmente dinheiro que não tinham para gastar). Os parentes do interior. Lá pelo início da tarde, tiraram o cateter de oxigênio, pegaram a menininha no colo e foram embora. Fugiram. Honestamente, espero que tenham o bom senso de retornar, quando a criança estiver exausta e sem conseguir respirar, após toda a agitação da festa. Mas não muito exausta, para dar tempo de ser atendida. Torço que sobreviva ao desmazelo dos pais. Só nos restou acionar o conselho tutelar, não que isso adiante lá para grande coisa.
Já tive uma filha de um ano internada no hospital com pneumonia. Meu único pensamento era vê-la melhorar para poder levá-la para casa. Bem, respirando sem ajuda de aparelhos. Para poder descansar em casa e recuperar-se. Após sua alta hospitalar, lembro-me que ela passou a tarde a explorar seus brinquedos tranquilamente, sentadinha no tapete da sala. Parecia estar matando a saudade do seu cantinho. Não a levei a um salão barulhento em uma roupa desconfortável e cheia de gente estranha que não a conheciam direito. Levei-a para sua zona de conforto.
Meus outros dois casos marcantes foram dois bebês de menos de um mês, filhos de presidiárias. Bebezinhos fofos, bem cuidados e bem nutridos ao seio materno. Ambos com problema respiratório. Um já estava internado, outro internei durante o plantão. As lágrimas corriam dos olhos da mãe, algemada a segurar a criança. Dentro do consultório, a agente que a acompanhava retirou as algemas. Estes bebês moram com as mães no presídio. Mamam no peito e gozam da companhia das mães. E isto é o mais importante. Mas a agente penitenciária me contou que há infestação por insetos e muita umidade nas celas. Mesmo aquelas onde ficam os bebês. Além disso, muitas detentas fumam. Mesmo que não seja na mesma cela, há um cheiro perene de cigarro por todas as áreas. (A fumaça do cigarro, os bacilos da tuberculose, os vírus e as bactérias que habitam locais densamente povoados não tem a boa educação de respeitar o perímetro do bercinho onde dorme o bebê).
As detentas não podem ficar no hospital enquanto os bebês estão internados. Elas têm direito de visitá-los diariamente e de ordenhar leite materno, tanto no presídio como no banco de leite do hospital. Mas as crianças ficam com outro familiar (pai ou avós). Quando não há familiares, voluntárias da pastoral carcerária acompanham os pequenos.
Também torço para que aquelas mães não tenham feito nada tão grave que necessitem um período muito longo na prisão. Tomara que saiam logo e possam levar suas crianças para casa. Lugar de nenê é com a mãe. Mas lugar de nenê não é na prisão. Mundo cão.
E mesmo assim, adoro ser pediatra.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Inspiração

Depois de alguns meses escrevendo no blog, o cansaço anda a me derrotar. A prioridade sempre são as filhas. Depois, dormir. As outras necessidades básicas, escrever entre elas, chegam bem atrás, seguidas pelo trabalho, marido e estudo. E todos os supérfluos, como jogar paciência no computador, fazer as unhas e pintar os cabelos, não chegaram ainda.
As crianças são uma ocupação nobre e muito divertida. Mas podiam vir com um botãozinho de on/off para ser usado à noite. O problema é que eu não deixo de lado o cargo de mãe depois que escurece. Não dá para terceirizar. À noite, sou mais mamãe do que nunca. Logo eu, que gostava tanto de dormir.
Joana continua insone. Há noites em que, às duas horas da manhã, ela acorda como se fosse o miolo da tarde. E só decide voltar a dormir lá pelas cinco. Nessas três horas, ela brinca, joga seus brinquedos ao chão, chora, mama, brinca mais um pouco, chora mais um monte até que, finalmente, dorme. Pela manhã, acorda feliz e bem disposta. Quem vê, acha que dormiu uma reparadora noite de sono.
Eu não tenho acordado nem feliz e nem bem disposta. Por isso, talvez, ando sem muita inspiração até para escrever. Minha vida funciona no piloto automático. Já não presto muita atenção em nada. Começo a funcionar melhor após o almoço, quando dou um cochilo de meia hora ou quarenta minutos. Algumas colegas de trabalho, casadas e sem filhos, olham para mim como quem pensa:
-Acho que esse negócio de ter nenê não vai rolar.
O velho dilema, "filhos, filhos, melhor não tê-los, mas se não os temos, como sabê-lo?"
Ainda não saí daquela parte das "noites insones, cãs prematuras".
Enquanto isso, tento apreciar a mágica que é o desenvolvimento humano, ainda que cansada. (Talvez o cansaço seja inerente a todas as mães)
Joana tenta maneiras diferentes de levantar-se para ficar em pé. Caminha com apoio de apenas uma mão. Testa seu equilíbrio e as leis da física. E tem um tropismo para tudo o que é perigoso. Continua fascinada pela lei da gravidade e por potes e baldinhos para botar e tirar coisas de dentro.
E a Luísa agora diverte-se explorando outras línguas. Ela pede para ver desenhos animados em inglês, embora não entenda quase nada. Gosta de cantar músicas e pede para cantarmos em inglês após. O mais divertido é quando ela canta ela mesma em inglês (ou na sua versão da língua inglesa).
Filhas, filhas, melhor tê-las. Muito melhor tê-las. Quanto ao sono, bom, continua a ser um sonho distante.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Criança dá trabalho

Ser mamãe é muito lindo, mas este blog andou meio abandonado por culpa (essa palavra maldita) da tal da maternidade. Não que o blog seja mais importante que as filhas. Mas este justamente é o problema da maternidade. Nada é mais importante que as filhas. Ir ao cinema, fazer exercício, tricô, blog, educação à distância. Tudo é secundário, porque uma esteve com febre, foi aniversário da outra. Hoje tem Disney on Ice, amanhã tem festa da coleguinha. Reunião da creche, brincar na sala, ler um livro, botar na cama, dar banho, trocar a roupa, trocar as fraldas, cantar uma música, ouvir o que aconteceu hoje na escola, ouvir o que vai haver amanhã. É lindo, vê-las a soltarem-se no mundo. Mas minha vidinha, minhas coisinhas de míope também eram tão lindinhas! Ainda não achei a medida entre trabalho, maternidade, hobbies, marido e família. Se alguém já achou, por favor, manifeste-se. Gostaria de trabalhar menos, mas preciso ganhar a mesma coisa. Quero uma casa bem grande, mas também quero aproveitá-la e aproveitar a companhia das pessoas que nela moram.
Hoje, escrevo do trabalho. Arrumei um intervalinho e decidi extravasar minha vontade de escrever aqui mesmo, pois em casa fica meio complicado. Em casa, elas vêm sempre primeiro. Não dá para escrever. Minha função multitarefa anda prejudicada pela falta de sono e cansaço. Só consigo fazer uma coisa de cada vez.
***
Voltando à poesia de ser mamãe, Luísa fez três anos no sábado. Fiz a festinha na escola, porque achei que ia ser mais fácil. Ela adorou. Tiraram fotos, que estavam lindas. As professoras capricharam na decoração da Galinha Pintadinha, escolhida pela dona da festa. 
Ontem, quando fui sair de casa para trabalhar de manhã, depois de todo o fim-de-semana junto com elas, Luísa disse:
-Não vai, Mâmi, fica aqui comigo - frase que parte o coração de qualquer mãe, ainda mais dita entre um sorrisinho sedutor.
-A mamãe precisa trabalhar. Precisa pagar as contas da casa, comprar livrinhos e brinquedos para vocês.
-Já temos bastante livrinhos e brinquedos, não precisa mais - frase que ela ouve sempre que quer comprar algo que não desejo comprar naquele momento. 
E o feitiço vira contra o feiticeiro. Quase chorei. Fiquei firme, saí sorrindo e disse que logo voltaria para brincarmos à noitinha. Mas tive muita vontade de mandar o posto às favas e ficar com elas. 
Ah, culpa, essa palavra maldita!

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Celular

Esqueci meu celular no posto hoje. E só agora descobri a quantidade de tempo que ele me toma. Tenho saudade do tempo em que um celular era apenas um telefone que a gente carrega de um lado para outro. Agora é uma central de comunicações e entretenimento. Acho que o que eu menos faço com aquele aparelho é falar telefone. Provavelmente o que eu mais faço é olhar as horas. Depois, mandar mensagens, olhar o twitter, ler e-mail, jogar paciência e, por último e muito depois, falar ao telefone. Ainda lembro quando, no ano 2000, durante uma temporada em Lausanne, na Suíça, fiquei muito curiosa sobre os aparelhos dos meus amigos europeus, que mandavam e recebiam mensagens de texto. Naquela época, meu enorme aparelho analógico Nokia limitava-se a fazer e receber ligações. Assim mesmo no Brasil, pois roaming internacional era ficção científica. Para falar celular na Suíça, eu teria que comprar um aparelho lá e habilitá-lo. Na época, o preço era proibitivo. Deixei meu celular no Brasil e fiquei desconectada por 5 semanas. De vez em quando, ia até a agência de correio perto da Place St. François, onde havia uns computadores com acesso gratuito à internet para olhar meu e-mail. E era isso. A médiateque da escola do Eurocentre onde estudava só abria sites en Français.
Passados 12 anos, o mundo digital evoluiu. Divirto-me sempre que assisto àquele filme De Volta Para o Futuro 2, em que eles viajam a 2015. Há carros voadores (não os imagino por aí num futuro próximo) e a grande revolução das telecomunicações são umas televisões enormes com muitos canais ao mesmo tempo que atendem ligações telefônicas. Em casa. Internet, nem pensar.
Adoro como as visões de futuro são invariavelmente exacerbações do presente do autor. Julio Verne escreveu um livro genial, publicado postumamente, chamado Paris No Século XX. Escrito em 1868, ele ambientava seu romance em 1968. Nada de revoltas de universitários. Nada de rock 'n roll. A música do século XX seria dodecafônica. Não me recordo de detalhes do livro, que li há uns 20 anos. Nem sei onde foi parar. Mas o futuro do século XIX era baseado no racionalismo científico levado às últimas consequências. Assim como as previsões sombrias de 1984, publicado em 1949, revelavam o temor de que as tendências totalitárias vigentes tornassem-se a regra num futuro não tão distante.
Acho que ninguém podia supor as redes sociais e aparelhos celulares diminutos e com múltiplas funções. Leonardo da Vinci poderia supor o helicóptero. Julio Verne pode supor a viagem à lua (ainda que seu astronauta usasse fraque e cartola). Mas nosso presente lida com o que não há. Lida com o virtual. Não são cartas que materializam-se instantaneamente no outro lado do mundo. Elas simplesmente não existem como objetos. São ideias que pairam em uma rede virtual transmitida via satélite, ou cabo de fibra óptica, para o mundo. Eu, hoje, não faço a menor ideia como funciona. É mágica. Eu escrevo aqui e você pode ler lá na Rússia. Instantaneamente. Imagina uma pessoa para quem um computador era uma máquina que contava. Ou que computava coisas, dados, números. Não se podia escrever poesia nos computadores originais. Apenas contar coisas, pessoas, valores. Poesia era escrita com papel e tinta.
As comunicações mudaram, os remédios mudaram, o mundo mudou. Mas Luísa ainda tosse, a despeito de todo esse progresso. Sento com ela no colo, pois a tosse persiste mesmo depois de medicada. E insônia de mãe de criança que tosse continua a mesma há séculos. Algumas coisas não mudam.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Últimas da Joaninha

Perdoem a recorrência do tema, mas é uma das razões centrais de eu escrever neste blog: duas menininhas chamadas Joana e Luísa. Sei que todas as mães consideram seus pimpolhos geniais e lindos. Eu não sou diferente. Pouco me importa saber se são mais ou menos geniais e lindas que as outras. Para mim, é suficiente a normalidade. A normalidade me impressiona. Um bebê completamente inútil (mas tão fofa) ao nascer, pouco a pouco vai se apropriando do ambiente em que vive. Está certo, qualquer outro mamífero fará progressos mais rápidos do que fez Einstei quando bebê. Já nascem e saem a caminhar por aí. Mas um bezerro ou um gatinho nunca chegará perto da genialidade de qualquer bebê humano.
Joana está a aprender sobre causa e consequência. Já algum tempo diverte-se a atirar objetos ao chão e ver o que acontece, metódica e cientificamente. Hoje estava sentada no tapete brincando com sua girafa de plástico. É uma girafa muito interessante. Seu pescoço é oco, e ela tem uma abertura em cima, na cabeça, e uma tecla no fundo. Quando a criança coloca cubos coloridos (que vêm junto com a girafa) no buraco, eles batem na tecla do fundo, que faz tocar uma musiquinha. Joaninha passou vários minutos a brincar de jogar os cubos para dentro da girafa e observar atentamente o som que faziam. Ela já tinha a habilidade motora de acertar o buraco com os cubos há algumas semanas. Mas hoje, algo a intrigou. Passou cerca de 20 minutos a experimentar com todos os cubos, um a um, para ver se o resultado era o mesmo. De repente, pegou a girafa, virou-a e procurou com o dedinho a tecla. Eureka! Era dali que vinha o barulho. Parou de jogar os cubos pelo pescoço da girafa e passou a apertar a tecla incessantemente, dando gritinhos de felicidade. Olhava para mim e mostrava-me seu feito:
- Ma, ma, ma, ma! É me, é me, é me! Galibu, galibu, bali, bali, abuuu!
Eu interpretei à minha maneira:
- Mamãe, mamãe, é minha girafa. Olha! O barulho vem daqui! O cubo cai e faz apertar esta tecla!
Genial.

***
Joana andou doentinha nos últimos dias, motivo da minha ausência prolongada neste blog. Não há inspiração que resista à preocupação e tamanha falta de sono. Agora está melhor. Sem febre, ainda com muita secreção respiratória e um pouco de tosse. Nada que não aflija toda a cidade de Porto Alegre nestes dias de frio de renguear cusco. E olha que ainda estamos no outono.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Dr. Pneu

Luísa, minha filha de quase 3 anos, tem asma. Quando tinha um ano, ficou internada por cinco dias no Hospital Santo Antônio com pneumonia. A pior experiência da minha vida, seguramente, ver meu bebê com soro na veia, olhar paradinho, sem nem protestar muito quando tinham que colocar novamente a cânula no bracinho. Detestei estar "do outro lado do balcão". Felizmente e graças ao seu pediatra, ela se recuperou perfeitamente bem e voltou a ser alegre e sorridente como sempre. Mas a tosse não passava e, em determinado momento, decidi levá-la ao pneumologista infantil. Levei-a no consultório de um professor, experiente e atualizado, que começou a tratar sua asma. Prescreveu vários remédios, até que as crises diminuíram muito. Luísa sempre gostou de ir lá, seja pela sala de espera com um aquário com lindos peixes e muitos brinquedos, seja pelo carinho com que sempre foi tratada. Na última vez que a havia levado para uma revisão agendada, contei à professora da creche, na frente dela, que iríamos ao pneumo. Luísa, ao chegar no centro clínico onde fica o consultório, perguntou:
-Mâmi, nós chegamos no "dr. Pneu"?
Achei divertidíssimo o dr. Pneu. Chegando na consulta, contei ao médico que ele fora carinhosamente apelidado de dr. Pneu. Luísa, sem entender nada, perguntou:
-Mâmi, cadê o pneu? Não tem pneu no dr. Pneu? - intrigou-se.
Ontem voltamos ao dr. Pneu. Ela já sabia que não havia pneus no dr. Pneu. E lembrava-se perfeitamente de que ele era o dr. Pneu. Cumprimentou-o:
-Oiiii, dr. Pneu! Você é o dr. Pneu? Não tem pneu no dr. Pneu, né?
-Eu sou seu dr. Pneu - respondeu meu colega orgulhoso.

***
Joaninha começou hoje a ficar em pé sozinha. Estava apoiada numa poltroninha pequena e, de repente, precisou das duas mãos para explorar um objeto. Ficou em pé sem apoio por alguns segundos. Logo antes, tinha escalado a tal poltrona, fazendo-a de degrau para subir na mesinha de centro e pegar um potinho colorido. Uma verdadeira macaquinha. Não conseguindo pegar o pote, esticava a mãozinha e olhava para mim enquanto dizia:
-Dá, dá, dá - enquanto sacudia as perninhas gordas.
Ela engatinha pela casa, pára de quando em quando para analizar algo interessante. Se surge algum obstáculo, escala e tenta passar por cima. E segue a expedição. É uma exploradora, minha Joana. 

***
Encontrei em Osório o carimbo de médico do vô Olyntho. Nome, CRM e, pasmem, endereço residencial. Quem é que pensa em botar o endereço residencial no seu carimbo hoje em dia? Às vezes acho que ele vivia não só em outra época como também em outro planeta. Um planeta em que o médico oferecia sua residência como referência para seus pacientes, necessitados de cuidados, orientações e consolo. Impraticável hoje em dia.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Caderninho

Achei nos alfarrábios da família um caderninho. Tem a capa dura com dois passarinhos em relevo. Ele pertenceu a uma menina de 13 anos que viveu em São Leopoldo em 1887. No caderninho, ela escrevia suas coisinhas, o nome das colegas, os aniversários das amigas, dos irmãos, dos pais. Descreveu os presentes que ganhou dos irmãos, o dinheirinho que os mais velhos lhe davam como agrado. Anotava também as notas da escola e o que estudava na época. Tudo com a letra mais linda que já vi na minha vida. E em português, não em alemão, que devia ser a língua falada na casa.
Xeretei o caderninho sentindo-me quase a violar os segredos daquela mocinha. Eram as suas notinhas. Talvez não fossem secretas, não era propriamente um diário. Mas era onde ela anotava coisinhas a serem guardadas.
A autora do caderninho era minha bisavó Josephina, mãe do vô Berto. Nunca soube muito sobre ela. Morreu de tuberculose quando o vô tinha apenas 11 anos. Recordo-me do seu rosto através de uma foto que tinha no gabinete do vô. Uma foto séria, sisuda, como eram as fotos naquela época. Sei que era professora e mãe de 12 filhos. Sei que uma vez deixou de dar zero a uma aluna porque seu filho Egberto, de cinco ou seis anos, pediu que não o fizesse, pois achava-a engraçadinha.
Mas o caderninho não era da professora e mãe de todos aqueles filhos. Era o caderninho de uma menina, no início da adolescência, que tinha a letra bonita e gostava de anotar suas coisinhas. Um túnel do tempo. Fiquei a imaginá-la, de vestido, cabelos castanhos e soltos, compridos, diferentes do penteado preso da foto. Imaginei como teria sido quando ganhou o caderninho. Como seria sua vida de menina no Vale dos Sinos no século XIX.
O caderninho tornou-se uma relíquia, que ficou com o tio Lito, irmão menor do vô, por quase toda sua vida. Já bem idoso, deu-o de presente ao vô, que ficou comovido com aquela recordação da mãe. O vô sempre se comovia quando falava na mãe. Viveu seus 94 anos muito bem vividos, teve seus filhos, netos, bisnetos, foi advogado, professor, funcionário público. Mas nunca superou completamente a morte prematura da vovó Josephina.
Acho que todas as mães têm um pouco este medo, este pânico. Quem vai cuidar das crianças se algo ocorrer a elas? Quem vai conhecer cada mania, cada jeitinho? Quem vai saber como tem que ser o banho, qual a história predileta, qual música para se acalmar depois de um susto? Quem vai ter paciência e compreensão com cada medo e cada faniquito?
Alguém vai cuidar das crianças que, como meu avô e seus irmãos, perderam a mãe muito cedo (eles mesmos foram cuidados pelo pai e por uma madrasta que, tenho certeza, fez o melhor que pôde ao casar-se com um viúvo pai de vários filhos adolescentes e alguns ainda pequenos) Mas nunca vai ser a mãe. Fico feliz em viver em uma época em que tuberculose, como tantas outras doenças, tem cura. E fico feliz e nostálgica ao visitar outra época através do caderninho da bisavó que não conheci.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Dez Meses

Up date dos dez meses:
-Joana engatinha há umas três semanas;
-levanta-se e fica em pé, apoiando-se no sofá;
-bate palmas;
-demonstra sua contrariedade quando o objeto que tem em mãos é retirado;
-diz "mamama", "é me", "pa", "meme". Achamos que quer dizer mamãe, é meu, papai e mamar, respectivamente;
-diz várias outras palavras, que não sabemos o que quer dizer. A minha favorita: "galibu, galibu, galibu, galibu".
-fala-as bem séria, enquanto está concentrada a explorar algum objeto, como a criança que vocaliza os passos do raciocínio matemático ao fazer o dever de casa;
-não dorme de noite.
Mas nada disso descreve a minha Joana realmente. Aos dez meses, já é uma pessoa muito intensa. Não passa desapercebida. Mesmo sem dormir direito à noite, costuma estar bem disposta durante o dia. Só não gosta de ser contrariada. (Nem eu, pra falar a verdade.) Ela demonstra veementemente sua contrariedade. Mas logo fica tranquila. E já é capaz de ficar mais de meia hora sozinha brincando com seus potinhos. (Nada é melhor para a Joana do que potinhos para empilhar, derrubar e colocar coisas dentro.)
Quando elas dormirem as duas a noite inteira, minha vida estará completa. Mas então, é possível que já tenham idade para ir a festinhas e eu nunca mais dormirei. Não explicam isso naqueles livros sobre bebês, que tu nunca mais vais dormir nesta vida. Eu as teria de qualquer maneira, mas talvez tivesse dormido mais antes, para fazer um estoque de sono para depois.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Viagem

Aviso aos navegantes: esta é uma postagem tristonha. E meio surreal. Não sei se fará sentido para alguém além de mim. Não sei se é só insônia (Joaninha...), mas ando melancólica. Fui ao supermercado ontem e, por sorte minha, quando estou assim, quase não compro nada. Só a lista. Os gastos extras seriam meus objetos de conforto. Pode parecer muito estranho, mas há objetos que me acalmam. Já dizia o Zeca Baleiro, "tristeza não é pecado, lugar de ser feliz não é supermercado". Não é mesmo. Não estava feliz. Chorava aquele choro pateta de quem não sabe bem por que chora. Queria usar óculos escuros, mas não enxergava direito. Se os olhos são as janelas da alma, os óculos escuros são o insulfilm. Dão privacidade para eu continuar a passar com a minha dor.

Procurei minha manteiga Aviação de lata. Só tinha tablete. Do que adianta a manteiga Aviação de tablete? A lata é fundamental. A lata de manteiga é meu elo perdido. Tablete não funciona. Próximo passo, balas Azedinhas. Estas eu achei. Balas Azedinhas são quase tão efetivas como a manteiga de lata. Acalmei minha melancolia com o pacotinho de balas da mesma maneira que a criança pequena acalma-se com seu paninho preferido.

Terminadas as compras, passei na livraria (erro fatal em dia de tristeza) e me deixei perder entre as estantes. Peguei um livro bonito e caro demais para ser comprado em um impulso e pus-me a folheá-lo enquanto saboreava meu cafezinho. Acho que solidão também não devia ser pecado. Precisava ficar comigo mesma. Não queria encontrar ninguém. Depois, voltei para casa e para a companhia de todos. Ainda não estava bem boa (ainda não estou). Brinquei com as filhas, dei banho, arrumei-as e coloquei-as na cama. A tristeza ronda minha sala. Já chorei mais um pouco e agora escrevo enquanto ouço a voz da Maysa, que canta Viagem, de João de Aquino e Paulo César Pinheiro. Daqui a pouco passa. A vantagem da melancolia é que a poesia brota dos dedos como se fosse algo natural para mim escrevê-la. Um dia crio coragem e publico no blog.
Enquanto a coragem não chega, compartilho um soneto de uma mulher que viveu em outro continente e em outra época, mas que hoje faz muito sentido para mim

(Marquesa de Alorna - 1750-1839)

Retratar a tristeza em vão procura
quem na vida um só pesar não sente,
porque sempre vestígios de contente
hão de surgir por baixo da pintura;

porém eu, infeliz, que a desventura
o mínimo prazer me não consente,
em dizendo o que sinto, a mim somente
parece que compete esta figura.

Sinto o bárbaro efeito das mudanças,
dos pesares o mais cruel pesar,
sinto do que perdi tristes lembranças;

condenam-se a chorar, e a não chorar,
sinto a perda total das esperanças,
e sinto-me morrer sem acabar.





E à demain, que eu sigo em frente

domingo, 13 de maio de 2012

Hoje faz uma semana desde a última postagem neste blog. Um recorde que não pretendo bater.
É que a vida anda corrida. Não consigo nem estudar os casos dos meus pacientes. Tampouco consigo dormir, mas se isto me impedir de qualquer coisa, já não faço mais nada. Sabe aquela tecla do FF do DVD? Dá a impressão de que meu controle remoto está com a miseravelzinha impacada.
Aprendi várias técnicas para desacelerar, mas elas só funcionam para quem tem tempo de desacelerar. Não tem sido o meu caso. Só dá tempo de acelerar cada vez mais. Até o dia em que me internarem num hospício. Sinto-me um pouco como naquele conto  do Andersen Sapatinhos Vermelhos, em que a mocinha veste seus sapatos vermelhos que a faz dançar continuamente até que lhe cortem os pés (acho que fizeram um filme sobre este conto, mas com sapatilhas de ponta).  Parei no sábado para a apresentação de dia das mães das meninas. Joana, evidentemente, não ensaiou nada, de maneira que assisti tranquilamente à da Luísa. A turminha dela cantou Primavera, do Tim Maia. Audacioso, ensaiar miniaturas de 2 e 3 anos a cantar uma música complexa como aquela. Mas eu, bem coruja, achei lindo. Principalmente a Luísa, a cantar a plenos pulmões:
- É primaveeeela. Te amo! - Enquanto rebolava com as mãozinhas na cintura e tentava esconter uma enome flor de sucata que seria dada à mamãe no final do coral.
Ganhei minha flor, meu presente, uma toalha-sacola que a creche mandou fazer com os pezinhos da Joana de um lado e um desenho da Luísa do lado, e mais uma carteirinha de embalagem tetrapak com os dedinhos da Joana carimbados. Tipo da coisa que só uma mãe valoriza, a serem guardados naquela caixa de quinquilharias que são muito frágeis e preciosas para serem usadas no dia-a-dia e, portanto, inúteis do ponto de vista prática. Mas que obviamente não podem jamais serem jogados fora.
Joana chora e, com seu choro, encerro esta postagem e o dia das mães

domingo, 6 de maio de 2012

Gonçalves Dias

Fiz hoje o concurso público para o Imesf (Instituto Municipal da Estratégia de Saúde da Família). Fiz o concurso não para trocar de emprego, mas sim para mantê-lo. Ocorre que a Estratégia de Saúde da Família (ESF) de Porto Alegre é, hoje, gerenciada pelo Instituto de Cardiologia. É, na prática, uma forma de terceirização, visto que o IC é uma instituição particular que recebe verbas municipais para contratar os funcionários da ESF do município. A área física pertence à Prefeitura, mas a folha de pagamento é do IC. Não me parecia ilegal quando eu entrei. Fiquei sabendo através de uma amiga que havia vagas para médico de família, fui até o responsável pelas contratações e arrumei o emprego. (Na verdade, das cerca de 120 equipes de saúde da família, acredito que 20 ou 30 estejam sem médico) Sou contratada com todos os benefícios trabalhistas, assim como qualquer trabalhador formal do Brasil. Ocorre que, aparentemente, não pode. Se é para prestar serviços para o município, tem que ser concursado. Há uma discussão interminável sobre se pode ser contratado por regime de CLT ou estatutário. Mas tem que ser funcionário da Prefeitura. Já ouvi diversos argumentos a favor e contra o Imesf. A grande maioria vem na carona de convicções políticas das mais variadas. De pessoas que congelaram em um determinado ponto da história, antes da queda do Muro de Berlim. Aquela época maravilhosa em que acreditávamos piamente que o socialismo funcionava mesmo. Ou que o capitalismo era a cura para todos os males. Tinha que ser a favor ou contra.
Já fui bem revolucionária no passado. Hoje, com mais de 30 anos, estou em casa, guardada por Deus contando o vil metal. Meu grande objetivo é pagar minhas contas em dia e alimentar as crianças. Tenho muitas convicções, acredito que o meu trabalho tem um impacto na vida dos meus pacientes. Ainda sou idealista. Faço questão de votar em todas as eleições e nunca anulei um voto. Não sou partidária desta teoria que "político é tudo igual". Acho simplista e equivocado. Todos somos políticos, querendo ou não. O problema não são os políticos. O problema somos todos nós, cidadãos brasileiros, quando passamos no sinal vermelho, furamos a fila do circo ou quase atropelamos alguém em cima da faixa de segurança. Acredito que o meu lugar é no Brasil, e não em qualquer outro lugar do mundo. Acredito na minha dívida para com o povo brasileiro, que pagou minha faculdade de medicina, pública, gratuita e de qualidade (como foi repetido à exaustão no dia da formatura).
Todo esse arroubo ideológico para justificar minha falta de ideologia na história do Imesf. Honestamente, vou continuar a trabalhar e a atender do mesmo jeito, com Imesf ou IC. Meu salário vai continuar a ser pago (espero), de uma maneira ou de outra, desde que eu passe no tal do concurso.
Mas eu iniciei esta postagem para falar da prova. Provinha chata, feita por quem pouco sabe sobre atenção primária em saúde. A sensação geral de quem saiu no final da prova foi de desânimo e desapontamento com as questões. Havia, no caso dos médicos, 278 inscritos para as 140 vagas oferecidas. Na minha sala, dos 25 candidatos, 11 não compareceram. Imagino que nas outras fosse semelhante. Ou seja, não sabemos se haverá número suficiente de médicos aprovados em concurso para preencher todas as vagas.
Dispúnhamos de quatro horas para realizar as 70 questões. E só poderíamos levar os cadernos de prova transcorridas três horas e meia do início da prova. E não podia anotar as respostas em qualquer outro lugar. Visto que boa parte da prova (Língua Portuguesa e Legislação) será igual para os outros cargos, que a farão na semana que vem, queria levar as questões para os colegas do posto verem-na e auxiliá-los em seus estudos (a competição pelos outros cargos não médicos parece ser bem mais acirrada, com milhares de inscritos para as mesmas 140 vagas, ou menos). Terminei a prova antes do meio-dia (começara às nove e meia). Tinha que esperar mais de uma hora. O que fazer? Tente cantar músicas mentalmente, mas estava quase a cantarolar em voz alta. Não ia fazer muito sucesso entre os colegas. Resolvi escrever. De repente, não sei por que, comecei a escrever atrás da prova os versos de I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias. Há muitos e muitos anos, já soube quase toda de cor. Escrevi compulsivamente, quase doentiamente, o Primeiro Canto. Só esqueci de uma estrofe. Depois, o Segundo Canto, que sabia inteiro. O Terceiro, nunca memorizei. O Quarto, o Canto de Morte, foi o primeiro que aprendi. É meu trecho predileto. Se valesse para o concurso, faria uma boa pontuação.

"Meu canto de morte
Guerreiros ouvi
Sou filho das selvas
Nas selvas cresci
Guerriros descendo
Da tribo Tupi
Da tribo pujante
Que agora anda errante
Por fado inconstante
Guerreiros nasci
Sou bravo, sou forte
Sou filho do Norte
Meu canto de morte
Guerreiro ouvi" 
Sempre tive essa facilidade para decorar coisas que, ainda que belas, são completamente inúteis para o andamento da vida prática. Se muito, I-Juca Pirama pode servir como método de chantagem:
- Se não fizeres o que eu quero, declamo I-Juca Pirama!
Por alguma razão, poesia romântica indianista não conta com muitos adeptos hoje em dia. Sempre gostei. No final, como faltavam 20 minutos para poder sair e já tendo terminado de transcrever todos os trechos memorizados do Gonçalves Dias, escrevi a Língua Portuguesa, do Olavo Brás Martins dos Guimaraens Bilac, poeta parnasiano genial, cujo nome é um verso alexandrino.

Última flor do Lácio, inculta e bela
És a um tempo esplendor e sepultura
Ouro nativo que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela

Amo-te assim, desconhecida e obscura
Tuba de alto clangor, lira singela
Tens o tron e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura

Amo teu viço agreste e teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo
Amo-te, ó rude e doloroso idioma

Em que na voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e amor sem brilho

Ah, se decorar poesia pagasse as minhas contas...

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Circo

Fomos ao circo, Luísa e eu. Foi no feriado do Dia do Trabalho. E deu trabalho, fora as horas que eu trabalhei para pagar a brincadeira toda. Ocorre que elas ganharam na creche uma "cortesia" para assistir o circo e o espetáculo da Galinha Pintadinha. Cortesia, lógico, acompanhadas de um adulto pagante. Papai não se dispunha a ir. Ficou em casa com a Joana.
Tive a ideia infeliz de ir de carro ao Parque da Harmonia, onde estava montado o circo. Fui imediatamente estorquida em dez reais por um flanelinha (na verdade, um flanelão), que tinha o dobro do meu tamanho e era muito mal encarado. Sozinha, vulnerável, com minha filhinha de 2 anos, acabei por pagar. Caminhamos até a fila da bilheteria onde, faltando 20 minutos para o espetáculo, muitas pessoas esperavam pacientemente sob o sol. Entrei na fila, expliquei à Luísa que tínhamos que comprar o ingresso primeiro e esperar a nossa vez. Mas as pessoas que acompanhavam as crianças, todas ansiosas por ver a Galinha Pintadinha, não entenderam o conceito de esperar a vez. Talvez não tenham frequentado a pré-escola, onde aprende-se, entre outras coisas, a esperar a vez. Furavam a fila descaradamente. Não fiz um barraco em respeito à minha filha. Vontade não faltou. No meio do sol, da fila e dos "furadores" de fila, um palhaço parecido com o Curinga gritava:
- Olha o palhacinho de brinquedo! Toda a criança leva o seu, só quem paga é o palhaço do papai! - enquanto embolsava os reais dos pais palhaços para seus pimpolhinhos.
Finalmente, compramos o tal ingresso, entramos, sentamos. Para o bem dos animais, circos não podem mais contar com a fauna africana para divertir os espectadores. Mesmo assim, dá pra fazer muita coisa divertida sem bichos, como nos prova o Cirque du Soleil. Nem precisava tanto. Trapezista, mágico, equilibrista, palhaço e malabarista já fazem um bom circo. Tinha três palhaços, um malabarista razoável e uma espécie de equilibrista. E deu. Tudo meio decadente e engembrado. Luísa gostou do malabarista, não deu muita bola para o resto que, confesso, era mesmo bem fraquinho. E aí, depois do intervalo, ela, a Galinha Pintadinha em toda a sua glória.
Oito pessoas com fantasias de galinha, galo, pintinho amarelinho e outros personagens (até bonitinhas as fantasias) a pular em cima do palco, com um playback da Galinha Pintadinha. Sem nenhuma ciência. Sem coreografia identificável. Tentativas de girar piruetas de ballet na fantasia desengonçada da galinha. Sem sucesso, claro. A dor.
Luísa, felizmente, gostou das fantasias e ficou feliz. Valeu o preço para vê-la cantar as músicas do seu primeiro show de música.
No final, por uma quantia razoável de dinheiro, podia tirar fotos com a Galinha Pintadinha e sua turma. Felizmente, minha filha não quis nem chegar perto do bonecão. Decidimos tirar a foto com a galinha de pelúcia que ela tem em casa.
Para coroar a falcatrua, umas pelúcias de Galinha Pintadinha, feitas nos fundos do circo, grotescas e pouco reconhecíveis, além de DVDs piratas.
Resumo do circo: mistura de filme de terror, extorsão, falcatrua e tudo que o Brasil ainda tem de pior. Mas a Luísa gostou, cantou, encontrou um amiguinho e, à noite, teve pesadelo com os palhaços/curingas. Com tudo isso, valeu cada centavo e cada minuto de estresse.

domingo, 29 de abril de 2012

Ciência

Continuo com a teoria que Joana nasceu para a ciência. Ela, agora aos 9 meses, segue com seus experimentos sobre a física e a matéria. Hoje após o jantar, sentada no cadeirão, explorava cubos de borracha. Havia seis cubos: dois cor-de-laranja, dois cor-de-rosa e dois verdes. Joana parecia sistematicamente separar os cubos por cores. Pegava cada um deles e examinava com as mãos, os olhos e a boca. Em seguida, posicionava à direita, no meio ou à esquerda da mesinha, conforme a cor. Depois de classificados, os cubos eram jogados de um lado ou de outro da mesinha. Em um lado, havia uma cadeira. No outro, o chão. Joana observava atentamente os cubos que caíam na cadeira. Os do chão, acho que não a interessavam muito, visto que ela há muito tempo joga objetos no chão, de onde quer que esteja. Quando acabavam os cubos, gritava:
- Ma, ma, ma! - enquanto olhava para mim, que estava sentada na mesa da sala.
No início, achei que ela queria sair da cadeira. Mas quando chegava perto, ela debruçava-se em direção à cadeira, tentando agarrar os cubos. Eu juntava os cubos e recolocava-os em cima da mesinha, todos misturados. E a operação começava de novo. Examinar, explorar, classificar por cores e jogar para um lado ou por outro. Ela passou uns 40 minutos na brincadeira com os cubos. Sempre séria e compenetrada, exceto quando eu juntava os cubos, momento em que batia palmas e dava gritinhos de felicidade. Oba, mais uma experiência no laboratório-cadeirão.
No banho, há meses seu grande divertimento é tentar "pegar" a água. Eu uso uma jarrinha para enxaguá-la. Quando derramo a água sobre ela, ela estica a mãozinha e "pega" a água que cai da jarra. Ficamos hoje um bom tempo na brincadeira da água que caía da jarrinha. Joana batia com as duas mãos na água e gritava de excitação depois que a água da jarra acabava.
Minhas filhas, como quaisquer crianças de classe média, possuem uma infinidade de brinquedos e livrinhos que apitam, com luzes que piscam, que falam ou emitem sons eletrônicos. O que me intriga é que seus brinquedos preferidos são os que não fazem nada. Joana gosta dos cubos e de potinhos de plástico que possam ser empilhados e derrubados. Luísa gosta de livros (os convencionais, de papel mesmo) e revistinhas. E sua brincadeira preferida é cuidar das bonecas e bichinhos. Ela os alimenta, agasalha, bota na cama, "nana" e dá banho. E enrola-os em panos. A parte preferida é a de enrolar no pano.
É claro que elas se interessam pela tecnologia. Minhas filhas não são ETs. Amam o computador e meu smartphone. E a mais velha gosta muito da televisão. Mas gostam mesmo dos cubos, potinhos, bonecas, panelinhas, bolhas de sabão, giz de cera e papel, massinha de modelar e outras peças de museu que divertiram gerações anteriores. Aparentemente, continuam a divertir as do século XXI.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Ballet

Voltei a fazer ballet. Não que eu vá me tornar la prima ballerina assoluta da Ópera de Milão. Nunca foi essa a intenção. Mas é uma boa maneira de manter a forma física. Uma maneira a que me acostumei ao longo dos últimos 20 anos.
Comecei tarde no ballet, com 14 ou 15 anos. Para candidatas a prima ballerina assoluta isso é bem tarde. Dancei bastante, mesmo assim. À medida que a vida foi acontecendo, fui me tornando menos assídua.
O problema de dançar ballet é que é um tipo de atividade física de tal maneira instigante para o cérebro, que todas as outras parecem chatas aos olhos da (ex)bailarina. Nadar idas e voltas em uma piscina, correr em uma esteira (no parque melhora um pouco), musculação. Nada disso se compara ao desafio do movimento perfeito. A dança é como uma escultura, em que damos ao corpo uma determinada forma, músculo por músculo.
Minha irmã começou a fazer ballet com seus 15 anos. Na época, acho que fiz troça. Achava meio bobo, não tinha ideia do que era o ballet. Já tinha assistido a alguns espetáculos de escola, mas nada profissional. Então um dia, passava na Sessão da Tarde um filme chamado Emoções. Mikhail Baryshikov, Alessandra Ferri, Leslie Brown e Julie Kent. A história é é relativamente pateta. Mas a dança é soberba. Em uma determinada cena do segundo ato de Giselle, há um close da câmera nos pés da Alessandra Ferri. Ela dava uns pulinhos e subia e descia das sapatilhas de ponta com uma velocidade incrível, como se não estivesse a fazer nada. Naquele exato momento eu me apaixonei pelo ballet. Acho que ainda levou um ano para começar a fazer aulas. Mas lembro-me até hoje do fascínio de ver aqueles pés.
Hoje, danço com menos glamour. Não há ensaios nem provas de figurinos. Não há combinação sobre maquiagem. Não há o teatro, o frio na barriga. Mas a sensação é a mesma. Termino este texto com os músculos doloridos do trabalho. Estou fora de forma, acima do peso. Sinto-me, por vezes, como aqueles hipopótamos dançantes de Fantasia, do Walt Disney (se bem que dançam com uma leveza invejável). Ainda assim, pouca coisa me faz mais feliz do que dançar. E tomara que seja assim por muito tempo, hipopótamo ou não.

domingo, 22 de abril de 2012

Rosário

Hoje, uma bela manhã de abril em Porto Alegre, fui prestar um concurso público. O meu local de prova era no Colégio Rosário, minha "alma mater". Acho que fazia uns 15 anos que não entrava lá. Tudo muito mederno e com um visual todo diferente. Agora chamam de Colégio "Marista" Rosário. Quando eu estudava lá, era só o Rosário. O piso é o mesmo, o bar fica no mesmo lugar, possivelmente com as mesmas pessoas dentro. A sala dos professores continua no mesmo igual, mas chama-se "espaço dos educadores" ou qualquer coisa mais modernosa do que "sala dos professores". Tive vontade de explorar o ambiente, mas os fiscais não gostaram muito da ideia de alguém circulando pelas áreas de prova depois de ter terminado. Quando eu fiz o Segundo Grau (hoje chamam de Ensino Médio), o colégio tinha meio que cara de escola pública. Tanto, que uma vez eu participei de filmagens de um comercial do Governo do Estado que cantava as maravilhas do ensino público gaúcho. Filmaram no Rosário, católico e bem pago. Uma fraude. As coisas funcionavam, mas tinha só quadro-negro e giz em todas as salas, cadeiras e mesas de madeira com tampo de fórmica, e a grande novidade eram os ventiladores de teto. O maior avanço da tecnologia era um sistema de som em todas as salas. Para assistir a vídeos, íamos para a sala 30, que era equipada com uma super TV de 29 polegadas. A grande conquista do GER (Grêmio Estudantil Rosariense) havia sido os armários para os alunos do Terceirão, que tinham aula de manhã e de tarde. Ainda assim, o que mais importava era de altíssimo nível: a qualidade do corpo docente. Nada era muito metido a besta. Hoje, tudo arrumadinho, com cara de que um marqueteiro andou por lá. TV de plasma em todas as salas, ar condicionado, cadeiras acolchoadas, quadro interativo eletrônico, quadro branco para escrever com canetas... Espero que os professores continuem bons como há 18 anos, quando me formei.

***
 
Play list da Luísa:
1. Cinco Patinhos
2. Marcha Soldado
3. Borboletinha
4. Dona Aranha
5. Chapeuzinho de Maillot
6. Allah-la-o
7. Boi da Cara Preta
8. Indiozinhos
9. Old McDonald had a farm
10. A história da "semente"

***
Chegamos há pouco de uma festa de aniversário da amiguinha da Luísa, que completou 3 anos. No salão do edifício onde a menina mora, com direito a todos os colegas da creche, escorregador inflável, cama elástica e piscina de bolinhas. Cansativo para a mamãe, mas eles brincaram até à exaustão. Gosto deste tipo de festa: docinhos feitos em casa, bolo feito pela avó, sem grandes efeitos pirotécnicos. As crianças não sentiram a menor falta dos brinquedos eletrônicos presentes nas casas de festa que são alugadas por aí. Aos 2 e 3 anos, estavam muito mais interessadas em correr como loucas, sem objetivo definido. Além disso, tinha balão. E podia pegar e brincar com os balões durante a festa! Até a Joana entrou na piscina de bolinha e brincou com uma coleguinha dela (irmã menor de um coleguinha da Luísa). Voltamos para casa todas exaustas (mamãe e filhinhas, porque o papai não se presta a frequentar os aniversários), mas felizes. E foi muito bacana poder conversar com as mães dos amigos das minhas filhas. Agora, no seu terceiro ano de creche, estou começando a conhecê-los melhor. 
Neste domingo à noite, me consola a ideia de que só faltam 5 dias para o final de semana.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Luísa gosta muito de livros. Ela escolhe, todas as noites, qual livro leremos na hora de dormir. Dia desses, escolheu o João Felpudo. O João Felpudo era um livro que tinha na casa dos meus avós. Edição de capa dura, antiga, tradução do Olavo Bilac. Não me lembrava propriamente do texto, confesso. Na última Feira do Livro, dei de cara com ele. Edição nova, outra tradução, sem capa dura. Tudo bem, era o João Felpudo que eu lembrava da infância, a mesma capa.
Havia lido um pedaço na época da compra, há cerca de 6 meses. Muito cômico, mas tudo apavorantemente trágico. Crianças levadas que sofrem acidentes horríveis e viram cinzas. Algo no estilo de Juca e Chico. Mesmo assim, Luísa adorou. Tenho cá minhas dúvidas se entendeu grande coisa, mas gostou dos versinhos. Repetiu um ou outro e, em alguns trechos dizia:
- De novo - enquanto divertia-se com as figuras.
O João Felpudo é um livro muito interessante para mim porque foi escrito de pai para filho. O autor, Heinrich Hoffmann, um alemão que viveu no século XIX, escreveu-o para seu filho de três anos. Ele procurava um livro para dar ao menino no Natal de 1844. Não encontrando nada apropriado na livraria local, comprou um bloco em branco e escreveu e ilustrou um livro. Os amigos e parentes gostaram tanto que ele acabou publicando. O mais interessante (para mim) é que Heirich Hoffmann era médico. Trabalhava em um manicômio, mas também atendia doentes em casa, como qualquer médico daquela época. Tinha o hábito de desenhar e contar histórias para distrair os pequenos pacientes pediátricos, para que não chorassem durante o exame.
Hoje, enquanto escolhia o presente de aniversário de uma amiga da Luísa na livraria do bairro, ocorreu-me que toda essa exuberância de livros infantis é muito boa, mas nos tolhe a imaginação. Há livros com teclado de piano, livros que apitam quando apertados, livros de banho para bebês, livros para o banho, livros sobre o banho. Há os que tocam música, os que imitam bichos, os que viram fantoches. Há até mesmo livros com texto e figuras, impressos em papel. Não há o que não haja. Por outro lado, quantos pais em 1844 (ou em 2012) tinham o talento e a disposição para escrever e ilustrar um livro para seu filho? E quantas crianças hoje, no mundo inteiro, têm acesso a livros lindos e instigantes, que estimulam seus pequenos cérebros em desenvolvimento?
Fico com o presente e o futuro. O passado é idílico mas, ao fim e ao cabo, o mundo gira e parece melhor hoje do que em vidas passadas, ao menos no Brasil. Menos crianças morrem com menos de 5 anos, os velhos vivem mais, mesmo quando são pobres e há muito mais crianças na escola do que em qualquer época anterior. A escola é muitas vezes ruim, os velhos muitas vezes sofrem, e a violência é assustadora. Há litros de coisas a serem feitas. Mas ainda prefiro 2012. Posso ler o João Felpudo e todos os livros que vieram depois. Temos acesso a 1844, 1912 e 2012. E tudo o que veio antes e no meio. Não é genial?

domingo, 15 de abril de 2012

Evento

Então, fomos a um evento a sós, sem crianças, pela primeira vez em oito meses. Tudo muito bom, a comida, a conversa, os amigos. Mas isso seria assunto para uma postagem muito chata. Muito mais divertido analizar a festa de 15 anos que acontecia no salão ao lado.
Umas três pessoas da nossa mesa foram ao toillette e voltaram horrorizadas com os trajes (ou a falta deles) das mocinhas da festa. Confesso que, quando fui, havia duas meninas muito maquiadas, com um salto bem alto e vestido curto, mas adequado. Mostravam as pernas, nada de mais. Os outros relatos, no entanto, falavam daquele conjunto de blusinha tomara-que-caia e sainha tomara-que-suba.
- Praticamente um cinto largo - dizia uma horrorizada - Uma coisa tão apertada que não dá pra respirar e tão curta que não dá para sentar.
- Como é que os pais deixam sair de casa assim - questionava outra.
- Graças a Deus só tenho filhos homens - respirava aliviada uma terceira.
Ocorreu-me lembrar àquelas caras e provectas senhoras, respeitáveis mães de famílias e com bons empregos estáves, que nos conhecemos do outro carnaval. Há 20 carnavais, para ser mais exata. E que há 20 anos, acho que nossas saias eram bem curtas. E recordo-me de ao menos uma de nós que saía de casa vestida praticamente como uma freira. E com o vestidinho tomara-que-me-comam (com o perdão do termo chulo) dentro da sacola, para o pai não ver.
Comecei a lembrá-las de tudo o que nós fazíamos antes de sermos mamães. Coisas que minha mãe até hoje acho que não sabe. E que eu espero nunca ficar sabendo sobre as minhas filhas, em um futuro breve. Nada que nossos pais e quaisquer outros adolescentes saudáveis também nunca tenham feito. Sem o consentimento dos genitores, lógico. Com raras excessões trágicas, estamos todas aqui para nos horrorizarmos com a geração seguinte.
Na segunda ida ao toillette, deparei-me com a tal sainha tomara-que-suba. É verdade, curta demais, mesmo para que tem 15 anos, supondo-se que a calcinha da moça deva ficar embaixo da saia, e não abaixo dela. Obviamente já haviam consumido uma quantidade considerável de álcool, aos 15 ou 16 anos. Mas isso faz parte da cultura geral do país, que inventa leis que jamais serão cumpridas. E nada que não tenha havido nos 15 anos da minha avó.
Mais divertido do que a celeuma da (falta de) roupa das meninas, no entanto, foi a diferença entre os meninos e elas. Elas, saia curta ou não, parecem mulheres (não me admira aparecerem grávidas aos 13 ou 14, não importa a classe social) Os meninos, ao contrário, parecem ter 12 anos. Os paletós com a manga comprida demais, a calça meio caindo e que arrasta no chão. A camisa para fora da calça, mesmo no início da festa e mesmo de gravata. E, com uma ou duas excessões, todos de tênis. Isso, de tênis de corrida verde-limão logo abaixo da calça social, da camisa e da gravata. Os cabelos dividem-se em franja grande em cima dos olhos ou moicanos, à moda Neymar. Sentados em um banco chupando pirulito (literalmente). As colegas, vestidas para matar, maquiadíssimas, tudo sob controle. E os gurizinhos sentadinhos a brincar com o celular ou algum Nintendo portátil, com o pirulito na boca. É evidente que elas engravidam dos meninos do terceiro ano.
Não acho que a juventude esteja perdida, quer dizer, não mais do que sempre teve. Não gosto deste discurso fatalista de que tudo está cada vez pior e o apocalipse se avizinha. Foi muito divertido analizar a adolescência dos tempos modernos. Ando muito focada na faze bebê/pré-escola dos tempos modernos. Pode ser que eu me engane, mas desde que eu consiga manter algum tipo de diálogo com as minhas filhas, todas sobreviveremos. Elas, em algum momento, vão sentir muita vergonha de mim. E eu, em algum momento, vou sentir muito orgulho delas. Ou não.