terça-feira, 29 de maio de 2012

Dr. Pneu

Luísa, minha filha de quase 3 anos, tem asma. Quando tinha um ano, ficou internada por cinco dias no Hospital Santo Antônio com pneumonia. A pior experiência da minha vida, seguramente, ver meu bebê com soro na veia, olhar paradinho, sem nem protestar muito quando tinham que colocar novamente a cânula no bracinho. Detestei estar "do outro lado do balcão". Felizmente e graças ao seu pediatra, ela se recuperou perfeitamente bem e voltou a ser alegre e sorridente como sempre. Mas a tosse não passava e, em determinado momento, decidi levá-la ao pneumologista infantil. Levei-a no consultório de um professor, experiente e atualizado, que começou a tratar sua asma. Prescreveu vários remédios, até que as crises diminuíram muito. Luísa sempre gostou de ir lá, seja pela sala de espera com um aquário com lindos peixes e muitos brinquedos, seja pelo carinho com que sempre foi tratada. Na última vez que a havia levado para uma revisão agendada, contei à professora da creche, na frente dela, que iríamos ao pneumo. Luísa, ao chegar no centro clínico onde fica o consultório, perguntou:
-Mâmi, nós chegamos no "dr. Pneu"?
Achei divertidíssimo o dr. Pneu. Chegando na consulta, contei ao médico que ele fora carinhosamente apelidado de dr. Pneu. Luísa, sem entender nada, perguntou:
-Mâmi, cadê o pneu? Não tem pneu no dr. Pneu? - intrigou-se.
Ontem voltamos ao dr. Pneu. Ela já sabia que não havia pneus no dr. Pneu. E lembrava-se perfeitamente de que ele era o dr. Pneu. Cumprimentou-o:
-Oiiii, dr. Pneu! Você é o dr. Pneu? Não tem pneu no dr. Pneu, né?
-Eu sou seu dr. Pneu - respondeu meu colega orgulhoso.

***
Joaninha começou hoje a ficar em pé sozinha. Estava apoiada numa poltroninha pequena e, de repente, precisou das duas mãos para explorar um objeto. Ficou em pé sem apoio por alguns segundos. Logo antes, tinha escalado a tal poltrona, fazendo-a de degrau para subir na mesinha de centro e pegar um potinho colorido. Uma verdadeira macaquinha. Não conseguindo pegar o pote, esticava a mãozinha e olhava para mim enquanto dizia:
-Dá, dá, dá - enquanto sacudia as perninhas gordas.
Ela engatinha pela casa, pára de quando em quando para analizar algo interessante. Se surge algum obstáculo, escala e tenta passar por cima. E segue a expedição. É uma exploradora, minha Joana. 

***
Encontrei em Osório o carimbo de médico do vô Olyntho. Nome, CRM e, pasmem, endereço residencial. Quem é que pensa em botar o endereço residencial no seu carimbo hoje em dia? Às vezes acho que ele vivia não só em outra época como também em outro planeta. Um planeta em que o médico oferecia sua residência como referência para seus pacientes, necessitados de cuidados, orientações e consolo. Impraticável hoje em dia.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Caderninho

Achei nos alfarrábios da família um caderninho. Tem a capa dura com dois passarinhos em relevo. Ele pertenceu a uma menina de 13 anos que viveu em São Leopoldo em 1887. No caderninho, ela escrevia suas coisinhas, o nome das colegas, os aniversários das amigas, dos irmãos, dos pais. Descreveu os presentes que ganhou dos irmãos, o dinheirinho que os mais velhos lhe davam como agrado. Anotava também as notas da escola e o que estudava na época. Tudo com a letra mais linda que já vi na minha vida. E em português, não em alemão, que devia ser a língua falada na casa.
Xeretei o caderninho sentindo-me quase a violar os segredos daquela mocinha. Eram as suas notinhas. Talvez não fossem secretas, não era propriamente um diário. Mas era onde ela anotava coisinhas a serem guardadas.
A autora do caderninho era minha bisavó Josephina, mãe do vô Berto. Nunca soube muito sobre ela. Morreu de tuberculose quando o vô tinha apenas 11 anos. Recordo-me do seu rosto através de uma foto que tinha no gabinete do vô. Uma foto séria, sisuda, como eram as fotos naquela época. Sei que era professora e mãe de 12 filhos. Sei que uma vez deixou de dar zero a uma aluna porque seu filho Egberto, de cinco ou seis anos, pediu que não o fizesse, pois achava-a engraçadinha.
Mas o caderninho não era da professora e mãe de todos aqueles filhos. Era o caderninho de uma menina, no início da adolescência, que tinha a letra bonita e gostava de anotar suas coisinhas. Um túnel do tempo. Fiquei a imaginá-la, de vestido, cabelos castanhos e soltos, compridos, diferentes do penteado preso da foto. Imaginei como teria sido quando ganhou o caderninho. Como seria sua vida de menina no Vale dos Sinos no século XIX.
O caderninho tornou-se uma relíquia, que ficou com o tio Lito, irmão menor do vô, por quase toda sua vida. Já bem idoso, deu-o de presente ao vô, que ficou comovido com aquela recordação da mãe. O vô sempre se comovia quando falava na mãe. Viveu seus 94 anos muito bem vividos, teve seus filhos, netos, bisnetos, foi advogado, professor, funcionário público. Mas nunca superou completamente a morte prematura da vovó Josephina.
Acho que todas as mães têm um pouco este medo, este pânico. Quem vai cuidar das crianças se algo ocorrer a elas? Quem vai conhecer cada mania, cada jeitinho? Quem vai saber como tem que ser o banho, qual a história predileta, qual música para se acalmar depois de um susto? Quem vai ter paciência e compreensão com cada medo e cada faniquito?
Alguém vai cuidar das crianças que, como meu avô e seus irmãos, perderam a mãe muito cedo (eles mesmos foram cuidados pelo pai e por uma madrasta que, tenho certeza, fez o melhor que pôde ao casar-se com um viúvo pai de vários filhos adolescentes e alguns ainda pequenos) Mas nunca vai ser a mãe. Fico feliz em viver em uma época em que tuberculose, como tantas outras doenças, tem cura. E fico feliz e nostálgica ao visitar outra época através do caderninho da bisavó que não conheci.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Dez Meses

Up date dos dez meses:
-Joana engatinha há umas três semanas;
-levanta-se e fica em pé, apoiando-se no sofá;
-bate palmas;
-demonstra sua contrariedade quando o objeto que tem em mãos é retirado;
-diz "mamama", "é me", "pa", "meme". Achamos que quer dizer mamãe, é meu, papai e mamar, respectivamente;
-diz várias outras palavras, que não sabemos o que quer dizer. A minha favorita: "galibu, galibu, galibu, galibu".
-fala-as bem séria, enquanto está concentrada a explorar algum objeto, como a criança que vocaliza os passos do raciocínio matemático ao fazer o dever de casa;
-não dorme de noite.
Mas nada disso descreve a minha Joana realmente. Aos dez meses, já é uma pessoa muito intensa. Não passa desapercebida. Mesmo sem dormir direito à noite, costuma estar bem disposta durante o dia. Só não gosta de ser contrariada. (Nem eu, pra falar a verdade.) Ela demonstra veementemente sua contrariedade. Mas logo fica tranquila. E já é capaz de ficar mais de meia hora sozinha brincando com seus potinhos. (Nada é melhor para a Joana do que potinhos para empilhar, derrubar e colocar coisas dentro.)
Quando elas dormirem as duas a noite inteira, minha vida estará completa. Mas então, é possível que já tenham idade para ir a festinhas e eu nunca mais dormirei. Não explicam isso naqueles livros sobre bebês, que tu nunca mais vais dormir nesta vida. Eu as teria de qualquer maneira, mas talvez tivesse dormido mais antes, para fazer um estoque de sono para depois.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Viagem

Aviso aos navegantes: esta é uma postagem tristonha. E meio surreal. Não sei se fará sentido para alguém além de mim. Não sei se é só insônia (Joaninha...), mas ando melancólica. Fui ao supermercado ontem e, por sorte minha, quando estou assim, quase não compro nada. Só a lista. Os gastos extras seriam meus objetos de conforto. Pode parecer muito estranho, mas há objetos que me acalmam. Já dizia o Zeca Baleiro, "tristeza não é pecado, lugar de ser feliz não é supermercado". Não é mesmo. Não estava feliz. Chorava aquele choro pateta de quem não sabe bem por que chora. Queria usar óculos escuros, mas não enxergava direito. Se os olhos são as janelas da alma, os óculos escuros são o insulfilm. Dão privacidade para eu continuar a passar com a minha dor.

Procurei minha manteiga Aviação de lata. Só tinha tablete. Do que adianta a manteiga Aviação de tablete? A lata é fundamental. A lata de manteiga é meu elo perdido. Tablete não funciona. Próximo passo, balas Azedinhas. Estas eu achei. Balas Azedinhas são quase tão efetivas como a manteiga de lata. Acalmei minha melancolia com o pacotinho de balas da mesma maneira que a criança pequena acalma-se com seu paninho preferido.

Terminadas as compras, passei na livraria (erro fatal em dia de tristeza) e me deixei perder entre as estantes. Peguei um livro bonito e caro demais para ser comprado em um impulso e pus-me a folheá-lo enquanto saboreava meu cafezinho. Acho que solidão também não devia ser pecado. Precisava ficar comigo mesma. Não queria encontrar ninguém. Depois, voltei para casa e para a companhia de todos. Ainda não estava bem boa (ainda não estou). Brinquei com as filhas, dei banho, arrumei-as e coloquei-as na cama. A tristeza ronda minha sala. Já chorei mais um pouco e agora escrevo enquanto ouço a voz da Maysa, que canta Viagem, de João de Aquino e Paulo César Pinheiro. Daqui a pouco passa. A vantagem da melancolia é que a poesia brota dos dedos como se fosse algo natural para mim escrevê-la. Um dia crio coragem e publico no blog.
Enquanto a coragem não chega, compartilho um soneto de uma mulher que viveu em outro continente e em outra época, mas que hoje faz muito sentido para mim

(Marquesa de Alorna - 1750-1839)

Retratar a tristeza em vão procura
quem na vida um só pesar não sente,
porque sempre vestígios de contente
hão de surgir por baixo da pintura;

porém eu, infeliz, que a desventura
o mínimo prazer me não consente,
em dizendo o que sinto, a mim somente
parece que compete esta figura.

Sinto o bárbaro efeito das mudanças,
dos pesares o mais cruel pesar,
sinto do que perdi tristes lembranças;

condenam-se a chorar, e a não chorar,
sinto a perda total das esperanças,
e sinto-me morrer sem acabar.





E à demain, que eu sigo em frente

domingo, 13 de maio de 2012

Hoje faz uma semana desde a última postagem neste blog. Um recorde que não pretendo bater.
É que a vida anda corrida. Não consigo nem estudar os casos dos meus pacientes. Tampouco consigo dormir, mas se isto me impedir de qualquer coisa, já não faço mais nada. Sabe aquela tecla do FF do DVD? Dá a impressão de que meu controle remoto está com a miseravelzinha impacada.
Aprendi várias técnicas para desacelerar, mas elas só funcionam para quem tem tempo de desacelerar. Não tem sido o meu caso. Só dá tempo de acelerar cada vez mais. Até o dia em que me internarem num hospício. Sinto-me um pouco como naquele conto  do Andersen Sapatinhos Vermelhos, em que a mocinha veste seus sapatos vermelhos que a faz dançar continuamente até que lhe cortem os pés (acho que fizeram um filme sobre este conto, mas com sapatilhas de ponta).  Parei no sábado para a apresentação de dia das mães das meninas. Joana, evidentemente, não ensaiou nada, de maneira que assisti tranquilamente à da Luísa. A turminha dela cantou Primavera, do Tim Maia. Audacioso, ensaiar miniaturas de 2 e 3 anos a cantar uma música complexa como aquela. Mas eu, bem coruja, achei lindo. Principalmente a Luísa, a cantar a plenos pulmões:
- É primaveeeela. Te amo! - Enquanto rebolava com as mãozinhas na cintura e tentava esconter uma enome flor de sucata que seria dada à mamãe no final do coral.
Ganhei minha flor, meu presente, uma toalha-sacola que a creche mandou fazer com os pezinhos da Joana de um lado e um desenho da Luísa do lado, e mais uma carteirinha de embalagem tetrapak com os dedinhos da Joana carimbados. Tipo da coisa que só uma mãe valoriza, a serem guardados naquela caixa de quinquilharias que são muito frágeis e preciosas para serem usadas no dia-a-dia e, portanto, inúteis do ponto de vista prática. Mas que obviamente não podem jamais serem jogados fora.
Joana chora e, com seu choro, encerro esta postagem e o dia das mães

domingo, 6 de maio de 2012

Gonçalves Dias

Fiz hoje o concurso público para o Imesf (Instituto Municipal da Estratégia de Saúde da Família). Fiz o concurso não para trocar de emprego, mas sim para mantê-lo. Ocorre que a Estratégia de Saúde da Família (ESF) de Porto Alegre é, hoje, gerenciada pelo Instituto de Cardiologia. É, na prática, uma forma de terceirização, visto que o IC é uma instituição particular que recebe verbas municipais para contratar os funcionários da ESF do município. A área física pertence à Prefeitura, mas a folha de pagamento é do IC. Não me parecia ilegal quando eu entrei. Fiquei sabendo através de uma amiga que havia vagas para médico de família, fui até o responsável pelas contratações e arrumei o emprego. (Na verdade, das cerca de 120 equipes de saúde da família, acredito que 20 ou 30 estejam sem médico) Sou contratada com todos os benefícios trabalhistas, assim como qualquer trabalhador formal do Brasil. Ocorre que, aparentemente, não pode. Se é para prestar serviços para o município, tem que ser concursado. Há uma discussão interminável sobre se pode ser contratado por regime de CLT ou estatutário. Mas tem que ser funcionário da Prefeitura. Já ouvi diversos argumentos a favor e contra o Imesf. A grande maioria vem na carona de convicções políticas das mais variadas. De pessoas que congelaram em um determinado ponto da história, antes da queda do Muro de Berlim. Aquela época maravilhosa em que acreditávamos piamente que o socialismo funcionava mesmo. Ou que o capitalismo era a cura para todos os males. Tinha que ser a favor ou contra.
Já fui bem revolucionária no passado. Hoje, com mais de 30 anos, estou em casa, guardada por Deus contando o vil metal. Meu grande objetivo é pagar minhas contas em dia e alimentar as crianças. Tenho muitas convicções, acredito que o meu trabalho tem um impacto na vida dos meus pacientes. Ainda sou idealista. Faço questão de votar em todas as eleições e nunca anulei um voto. Não sou partidária desta teoria que "político é tudo igual". Acho simplista e equivocado. Todos somos políticos, querendo ou não. O problema não são os políticos. O problema somos todos nós, cidadãos brasileiros, quando passamos no sinal vermelho, furamos a fila do circo ou quase atropelamos alguém em cima da faixa de segurança. Acredito que o meu lugar é no Brasil, e não em qualquer outro lugar do mundo. Acredito na minha dívida para com o povo brasileiro, que pagou minha faculdade de medicina, pública, gratuita e de qualidade (como foi repetido à exaustão no dia da formatura).
Todo esse arroubo ideológico para justificar minha falta de ideologia na história do Imesf. Honestamente, vou continuar a trabalhar e a atender do mesmo jeito, com Imesf ou IC. Meu salário vai continuar a ser pago (espero), de uma maneira ou de outra, desde que eu passe no tal do concurso.
Mas eu iniciei esta postagem para falar da prova. Provinha chata, feita por quem pouco sabe sobre atenção primária em saúde. A sensação geral de quem saiu no final da prova foi de desânimo e desapontamento com as questões. Havia, no caso dos médicos, 278 inscritos para as 140 vagas oferecidas. Na minha sala, dos 25 candidatos, 11 não compareceram. Imagino que nas outras fosse semelhante. Ou seja, não sabemos se haverá número suficiente de médicos aprovados em concurso para preencher todas as vagas.
Dispúnhamos de quatro horas para realizar as 70 questões. E só poderíamos levar os cadernos de prova transcorridas três horas e meia do início da prova. E não podia anotar as respostas em qualquer outro lugar. Visto que boa parte da prova (Língua Portuguesa e Legislação) será igual para os outros cargos, que a farão na semana que vem, queria levar as questões para os colegas do posto verem-na e auxiliá-los em seus estudos (a competição pelos outros cargos não médicos parece ser bem mais acirrada, com milhares de inscritos para as mesmas 140 vagas, ou menos). Terminei a prova antes do meio-dia (começara às nove e meia). Tinha que esperar mais de uma hora. O que fazer? Tente cantar músicas mentalmente, mas estava quase a cantarolar em voz alta. Não ia fazer muito sucesso entre os colegas. Resolvi escrever. De repente, não sei por que, comecei a escrever atrás da prova os versos de I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias. Há muitos e muitos anos, já soube quase toda de cor. Escrevi compulsivamente, quase doentiamente, o Primeiro Canto. Só esqueci de uma estrofe. Depois, o Segundo Canto, que sabia inteiro. O Terceiro, nunca memorizei. O Quarto, o Canto de Morte, foi o primeiro que aprendi. É meu trecho predileto. Se valesse para o concurso, faria uma boa pontuação.

"Meu canto de morte
Guerreiros ouvi
Sou filho das selvas
Nas selvas cresci
Guerriros descendo
Da tribo Tupi
Da tribo pujante
Que agora anda errante
Por fado inconstante
Guerreiros nasci
Sou bravo, sou forte
Sou filho do Norte
Meu canto de morte
Guerreiro ouvi" 
Sempre tive essa facilidade para decorar coisas que, ainda que belas, são completamente inúteis para o andamento da vida prática. Se muito, I-Juca Pirama pode servir como método de chantagem:
- Se não fizeres o que eu quero, declamo I-Juca Pirama!
Por alguma razão, poesia romântica indianista não conta com muitos adeptos hoje em dia. Sempre gostei. No final, como faltavam 20 minutos para poder sair e já tendo terminado de transcrever todos os trechos memorizados do Gonçalves Dias, escrevi a Língua Portuguesa, do Olavo Brás Martins dos Guimaraens Bilac, poeta parnasiano genial, cujo nome é um verso alexandrino.

Última flor do Lácio, inculta e bela
És a um tempo esplendor e sepultura
Ouro nativo que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela

Amo-te assim, desconhecida e obscura
Tuba de alto clangor, lira singela
Tens o tron e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura

Amo teu viço agreste e teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo
Amo-te, ó rude e doloroso idioma

Em que na voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e amor sem brilho

Ah, se decorar poesia pagasse as minhas contas...

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Circo

Fomos ao circo, Luísa e eu. Foi no feriado do Dia do Trabalho. E deu trabalho, fora as horas que eu trabalhei para pagar a brincadeira toda. Ocorre que elas ganharam na creche uma "cortesia" para assistir o circo e o espetáculo da Galinha Pintadinha. Cortesia, lógico, acompanhadas de um adulto pagante. Papai não se dispunha a ir. Ficou em casa com a Joana.
Tive a ideia infeliz de ir de carro ao Parque da Harmonia, onde estava montado o circo. Fui imediatamente estorquida em dez reais por um flanelinha (na verdade, um flanelão), que tinha o dobro do meu tamanho e era muito mal encarado. Sozinha, vulnerável, com minha filhinha de 2 anos, acabei por pagar. Caminhamos até a fila da bilheteria onde, faltando 20 minutos para o espetáculo, muitas pessoas esperavam pacientemente sob o sol. Entrei na fila, expliquei à Luísa que tínhamos que comprar o ingresso primeiro e esperar a nossa vez. Mas as pessoas que acompanhavam as crianças, todas ansiosas por ver a Galinha Pintadinha, não entenderam o conceito de esperar a vez. Talvez não tenham frequentado a pré-escola, onde aprende-se, entre outras coisas, a esperar a vez. Furavam a fila descaradamente. Não fiz um barraco em respeito à minha filha. Vontade não faltou. No meio do sol, da fila e dos "furadores" de fila, um palhaço parecido com o Curinga gritava:
- Olha o palhacinho de brinquedo! Toda a criança leva o seu, só quem paga é o palhaço do papai! - enquanto embolsava os reais dos pais palhaços para seus pimpolhinhos.
Finalmente, compramos o tal ingresso, entramos, sentamos. Para o bem dos animais, circos não podem mais contar com a fauna africana para divertir os espectadores. Mesmo assim, dá pra fazer muita coisa divertida sem bichos, como nos prova o Cirque du Soleil. Nem precisava tanto. Trapezista, mágico, equilibrista, palhaço e malabarista já fazem um bom circo. Tinha três palhaços, um malabarista razoável e uma espécie de equilibrista. E deu. Tudo meio decadente e engembrado. Luísa gostou do malabarista, não deu muita bola para o resto que, confesso, era mesmo bem fraquinho. E aí, depois do intervalo, ela, a Galinha Pintadinha em toda a sua glória.
Oito pessoas com fantasias de galinha, galo, pintinho amarelinho e outros personagens (até bonitinhas as fantasias) a pular em cima do palco, com um playback da Galinha Pintadinha. Sem nenhuma ciência. Sem coreografia identificável. Tentativas de girar piruetas de ballet na fantasia desengonçada da galinha. Sem sucesso, claro. A dor.
Luísa, felizmente, gostou das fantasias e ficou feliz. Valeu o preço para vê-la cantar as músicas do seu primeiro show de música.
No final, por uma quantia razoável de dinheiro, podia tirar fotos com a Galinha Pintadinha e sua turma. Felizmente, minha filha não quis nem chegar perto do bonecão. Decidimos tirar a foto com a galinha de pelúcia que ela tem em casa.
Para coroar a falcatrua, umas pelúcias de Galinha Pintadinha, feitas nos fundos do circo, grotescas e pouco reconhecíveis, além de DVDs piratas.
Resumo do circo: mistura de filme de terror, extorsão, falcatrua e tudo que o Brasil ainda tem de pior. Mas a Luísa gostou, cantou, encontrou um amiguinho e, à noite, teve pesadelo com os palhaços/curingas. Com tudo isso, valeu cada centavo e cada minuto de estresse.