terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Lógica

Adoro a lógica infantil. E adoro os erros que as criancinhas cometem enquanto aprendem a falar. Na verdade, acho que os seus erros dizem mais sobre sua fantástica capacidade intelectual do que os seus acertos. Quando acertam, muitas vezes apenas repetem algo que memorizaram pelo uso. Quando erram, usaram a própria cachola e chegam àquela conclusão por conta própria. Por exemplo, Luísa conjuga os verbos de uma maneira incrível. Perguntada se quer fazer xixi, responde:
- Eu já fazi!
Faz todo o sentido. Ela, com dois anos e oito meses, não sabe nada sobre verbos irregulares. Mas sabe que, quando falamos do passado, usamos a terminação "i": eu já comi, eu já saí e, óbvio, eu já fazi. Com menos de três anos ela consegue extrapolar uma regra de algumas palavras e generalizar o seu uso. E ninguém a ensinou isso. Ela aprendeu sozinha, somente observando a maneira como os adultos falam.
Enquanto isso, Joana aprende habilidades motoras. Está naquela fase deliciosa de enfiar os dedos do pé dentro da boca, com a maior naturalidade. E já consegue sentar-se firmemente e usar as mãos para brincar... por alguns segundos. Depois, vai caindo devagar até "capotar". E ri de tudo isso com as gengivas peladas.
Queria engarrafar a infância das meninas. Para quando forem adolescentes cheias de vontade eu me lembrar de cada um desses minutinhos deliciosos que passei com elas enquanto pequenininhas.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Historinhas de Dormir

Sempre gostei de ler. E nunca deixei de gostar histórias infantis. Antes de ter as filhas, às vezes comprava algum livro bonito de literatura infantil. Para mim mesmo, sem nem inventar nenhuma desculpa. Tentei algumas vezes lê-los para a Luísa, mas ela era muito pequena, não tinha paciência para histórias longas. Lia para elas os livros da coleção Gato e Rato, da Editora Ática, que têm muitas figuras e bem pouco texto. Ela os adora até hoje.
Há alguns dias, decidi tentar novamente alguma história mais longa. Nada muito grande, textos de uma ou duas páginas. E ela finalmente prestou atenção e gostou. Assim, agora nós lemos todos os dias, religiosamente, duas ou três histórias na hora de dormir. Uma é de um livro daqueles "uma história por dia", que são textos curtos, de três ou quatro parágrafos. E, como é uma história por dia, não tem perigo dela querer ler o livro todo em uma noite. (É completamente proibido, inconstitucional e contra o código canônico ler a história do dia 27 de fevereiro no dia 26 de fevereiro. Só pode ler a história daquele dia.)
Claro que ela achou uma maneira de driblar a lei. Nós lemos outra história de outro livro na sequência. Chegamos a um acordo que são duas ou três histórias por noite, dependendo do tamanho. Hoje lemos três. É uma do livro dos dias, uma do livro das fábulas e uma dos livrinhos pequenos. No máximo.
O mais delicioso disso tudo são os comentários dela e toda a conversa que rola entre uma frase e outra. Hoje, quando deu boa noite aos avós, que estão hospedados aqui em casa, a vovó disse:
- Sonha com os anjinhos, minha filha.
Durante a história, do nada, ela me confidenciou:
- Mãe, os anjinhos são o Gabriel (meu pai) e a bisa, né? - citando dois falecidos muito presentes nesta residência- Tu tava triste quando a bisa foi embola, mãe? Tu ainda fica triste, mãe?
- Sim, meu amor, às vezes a mamãe sente saudade da bisa, porque eu queria abraçar a bisa e conversar com ela.
- Eu também queria abraçar a bisa.
Imediatamente nos abraçamos bem forte, e ela disse:
- Continua a história, mommy?
E continuamos com a nossa história sobre a lebre que tocava violino.Terminadas as histórias, acendemos as luzinhas de estelinhas, demos boa noite e ela dormiu.
A outra novidade para a Luísa são as histórias em quadrinhos. Ela começou a querer livrinhos novos com muita frequência, maior do que o meu bolso queria gastar. Tentei as revistinhas porque são uma alternativa barata e cheia de figurinhas. Ela adorou. Hoje, comprei uma do Mickey. Ela olha as figurinhas e vai contando o que ela acha que acontece. Sempre começa com "era uma vez...":
- Era uma vez o Mickey e o Pateta. Mommy, o que o Pateta disse?
E assim vamos lendo o gibi. Pode não ser uma obra-prima da literatura universal, mas tem figurinhas, letrinhas e desperta o interesse pela leitura. Acho genial. Para quem tem menos de três anos, é um  ótimo começo.
Quanto à Joana, ela está na frase de saborear os livros. Literalmente.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Acabaram-se as minhas férias. Ontem voltei ao trabalho e à vidinha de sempre. Os dramas e a montanha-russa que é a rotina de um posto de saúde. As pessoas nos procuram para resolvermos seus dilemas, com dimensões de tragédia grega. Só que de verdade. Somos os porteiros do sistema. O primeiro contato com o sistema, e também o menos equipado. Na cartilha é bem simples. Casos de idosos vítimas de violência, maus tratos ou negligência devem ser, segundo o estatuto do idoso, encaminhados à polícia ou ao Ministério Público. Como se a denúncia fosse resolver alguma coisa.
Há cerca de 8 ou 9 meses, ainda grávida da Joana, atendi uma senhora de cerca de 80 anos com uma queixa de emagrecimento. Dizia a cuidadora que ela recusava-se a comer e que era agitada à noite. Fora levada a uma emergência psiquiátrica e devidamente medicada, a ponto de estar "chapada" durante a consulta. Além de tudo, a senhora era surda. Eu, assim como toda a equipe, que já conhecia o caso havia mais tempo, suspeitávamos que a d. Maria não recusava-se a comer. Achávamos que não lhe era oferecida alimentação adequada. Ela não apresentava equimoses ou outros sinais de violência física, mas o relato de quem visitara seu domicílio era de que o mau cheiro era terrível e que ela ficava todo o dia sedada, deitada na cama ou sentada em um cadeira a olhar para o vazio.
Foi notificado o Ministério Público, como manda a lei. Inclusive, foi uma assistente social visitá-la. Um juiz determinou que sua pensão de dois salários-mínimos fosse utilizada em seu benefício. Mas ela continuou a ser cuidada pela mesma pessoa, desinteressada e sem afeto por ela. E esta pessoa (nós achamos) continuou a aproveitar o dinheirinho da pensão em benefício próprio. E a d. Maria continuou a emagrecer a olhos vistos. E o Ministério Público foi novamente notificado. Semana passada, uma vizinha levou a d. Maria ao hospital, onde recebeu alimentos e hidratação. Na nota de alta, dizia que chegara desnutrida e desidratada.
Hoje, a cuidadora foi ao posto solicitar que um dos médicos assinasse o atestado de óbito da d. Maria. Não sabemos as circunstâncias da morte, pois ela foi encontrada sem vida em cima da cama. Acho que morreu de tristeza, mas não dá para escrever isso no atestado de óbito.
Vou guardar na minha memória o seu sorriso tímido, apesar de todos os remédios, no primeiro dia em que lhe atendi, quando consegui me comunicar consigo, apesar da cuidadora e da sua surdez. Vou me lembrar da sua mão, que tocou minha barriga enorme, e da sua voz quase apagada que sussurrou:
- Boa sorte, nenezinho, tenha uma vida melhor que a minha. Uma boa hora, minha filha.
Vá em paz, d. Maria. Que a morte lhe traga o alívio que a vida não lhe deu.
Desculpem a postagem triste. Estou triste pela minha incapacidade de dar à d. Maria uma morte menos banal e menos sofrida. A velha mania de médico de achar que poderia resolver tudo. Amanhã vai ser melhor.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Carnaval

Então é véspera do carnaval. Adoro samba, mas não chego a ser a maior fã de todo esse auê. Quando mais jovem, sem marido e sem filhas, gostava de ir nos bailes da praia. Os desfiles na televisão, após 34 carnavais, tornam-se um pouco repetitivos. Lá na avenida deve ser fascinante. Mas da TV, meio que perde um pouco. Como ver fogos de artifício pela TV. Artificial. Ou Foz do Iguaçu. Nem se compara com a coisa real. Enfim, eu não saberia, pois nunca assisti a um desfile de escolas de samba na avenida.
Ontem poderia ter levado as meninas no seu primeiro baile de carnaval, no Palácio de Verão. Só que a piscina era bem mais convidativa do que o baile, dado o calor insano que fazia. Ficamos todos mergulhados dentro da água, piscina ou lagoa. Inclusive a Joana. No salão do restaurante, as crianças chegavam fantasiadas para o baile. Metade era odalisca e a outra metade era havaiana. Uma ou outra bailarina. Os meninos, todos, literalmente, que eu vi, fantasiados de homem-aranha ou batman. Vários de sunga e máscara. Além da capa, lógico. Luísa tinha uma linda máscara de carnaval que a vovó levou outro dia, mas a fantasia de banhista dentro da água era muito melhor. Ainda haverá muitos carnavais para elas pularem.
Retornamos ontem para Forno Alegre. Cascatas de chuva na estrada e nenhuma gota na cidade (ao menos na Cidade Baixa). Quisemos fugir do trânsito e antecipamos nossa volta. Mesmo assim, free-way cheia (de água e de carros)
E agora, cá estou eu a digitar estas palavras, lembrando do Vinícius de Morais:
"A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra fazer a fantasia
De rei ou de pirata ou jardineira
Pra tudo se acabar na quarta-feira"
É, este ano me fantasiei de mãe durante o carnaval. Pena que tudo se acaba na quarta-feira, quando volto a ser a mulher-bombril: mil e uma utilidades. Inclusive, mãe.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Escrevo hoje diretamente do "Palácio de Verão", em Osório. Compromissos inadiáveis mantiveram-se afastada deste blog (por exemplo, dormir e ir à piscina) por alguns dias.
Ontem, conversando com a minha mãe, ela me atualizou sobre os tesouros encontrados entre os alfarrábios do vô Berto. Ele guardou por toda a vida toda a sua correspondência. Tudo deve ser interessante mas, sem dúvida, a parte da correspondência pré e pós Segunda Guerra com os parentes da Alemanha são um capítulo à parte. Preciso desesperadamente aprender alemão (gótico) para poder ler tudo aquilo.
Ela imaginou um filme. Para mim, é como ler um livro. Um dia, crio coragem e escrevo um. Uma das cartas mais intrigantes é a de um major do exército alemão, parente nosso, que escreveu para tentar localizar a sua família. Ele foi levado no final da guerra para um campo de prisioneiros em Nova York. Sua família, mulher e filhos, ficou na Alemanha, e ele não tinha nenhum tipo de notícia deles. Certamente tentou escrever para eles, mas não obteve sucesso. Fico a imaginar o major, no seu beliche no campo em Nova York, matutando uma maneira de saber notícias da família. De repente, lembra-se de uma visita que recebera anos antes, antes do início da Guerra: uns parentes que haviam imigrado para o Brasil estavam de passagem pela Europa e aproveitaram para visitá-los. Um deles dera-se bem: era o arcebispo de uma cidade brasileira de que nunca tinha ouvido falar, chamada Porto Alegre. E se ele escrevesse para o arcebispo? Não sabia o endereço, mas preencheu o formulário do campo de prisioneiros nos Estados Unidos e o endereçou ao Arcebispo D. João Becker, Porto Alegre, Brasil. Não sabemos quanto tempo demorou, mas a carta chegou e, aparentemente, pedia que fizesse contato com sua esposa. Não conheço o conteúdo da carta, mas parece-me que o contato realmente foi feito pelo vô Berto, que mandou notícias para o campo americano.
Quem poderia imaginar que, em 1945, um prisioneiro almão de guerra, nos Estados Unidos, conseguiria notícias da família através de um parente distante cujo pai, anos antes, imigrara para o Brasil. E que fora, com o seu tio arcebispo, à Alemanha em 1938 e aproveitara para visitar os parentes que não haviam imigrado. E falam hoje em globalização.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Rapidinho

A propósito de dizer coisas engraçadinhas, Luísa também canta coisas engraçadinhas. Ela tem uma compreensão toda especial das letras das músicas.
Algumas eu nem conhecia e descobri a letra no google, como aquela da Linda Sereia. Ela cantava, certa vez, a plenos pulmões:
- A linda sereia não era feliz  (...)
Achei meio trágica aquela coitada daquela sereia depressiva em pleno fundo do mar. Fui no google e descobri a música. Claro que a linda sereia era feliz. Desde quando a Xuxa ia cantar uma música com uma sereia que tomava fluoxetina?
Teve outra ocasião (e esta eu filmei, ela tinha 1 ano e 10 meses) em que ela cantava o Cielito Lindo:
Ai, ai, ai, ai
Tá chegando a hora
A dinda já vem ???, meu bem
E eu tenho que ir embola

A última foi neste final de semana, em que  ela cantava:
- Esta é a história da semente (...)
Perguntei o resto da história, ela me disse que a semente crescia no morro e mais uma coisa comprida sobre a tal da semente no morro, que virava uma planta e tinha uma borboleta branca que voava para a planta que tinha saído da semente. Tudo muito elaborado, exceto que a música era a História da Serpente, que tinha subido o morro para procurar seu rabo. Acho que ela inventou o que ela não lembrava. Ótima, a história da semente, na verdade, muito melhor do que a original, considerando que a "autora" é analfabeta e ainda troca o R pelo L.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Palavras

Já escrevi várias vezes nete blog sobre a linguagem em desenvolvimento da Luísa, que está com 2 anos e 7 meses. Ela diz coisas ótimas. Esses dias, pediu para eu passar pomada no "cotovelo da perna". Fez todo o sentido. A coceira que ela tinha era, tecnicamente, na fossa poplítea, popularmente conhecida como atrás do joelho. Entendi exatamente onde ela queria a pomada. Hoje, perguntei se ela queria pão com requeijão na hora do café da tarde, ao que me respondeu:
- Sim. Com requeijão de uva. E requeijão de mumu (doce de leite em gauchês).
Já contei aquela da pessoa de brinquedo (uma estátua). Tem também o Osório. Para a Luísa, o Osório vem a ser a pracinha próxima a nossa casa de veraneio, situada na cidade de Osório. O Osório é somente a pracinha.
Acho ótimo que ela chama as aranhas de "dona aranha". Provavelmente por causa da música infantil:
"A dona aranha subiu pela parede
Veio a chuva forte e a derrubou
Já parou a chuva e o sol já vai saindo
E a dona aranha continua subindo"
- Olha, mãe uma dona alanha lá.
Outras coisas que ela fala são bonitinhas. Não são erradas e nem estranhas. São simplesmente bonitinhas. Ela às vezes olha para a Joana, agora com 6 meses, e diz:
- A minha Joana. É a minha irmãzinha. A Joana é a minha irmãzinha.
Ou então:
-A Joana vai crescer e o cabelo dela vai crescer - Luísa tem uma enorme preocupação com o crescimento do cabelo da irmã - e a Joana vai caminhar e vai comer arroz, feijão e carninha!
- Eu ela bem pequenininha que eu dormia nesse berço onde agola a Joana dorme. E eu ela bem pequenininha que eu mamava na mamãe - enquanto acomoda seu Pateta de pelúcia debaixo da camiseta para "amamentar" o Pateta.
Ficou muito idignada quando explicamos que o nome do vovô Zé era José:
- Não, NÃO - quase às lágrimas - É Zé! É vovô Zé! Não é José!
Outra construção interessante:
- Ninguém não vai me ajudar a tirar o meu chilelo! - enquanto senta-se no chão e tira o chinelinho, orgulhosa da própria independência.
Pouco a pouco Luísa vai perdendo seu discurso quase-non-sense de criancinha e vai tornando-se mais uma pessoa articulada, com um discurso mais parecido com o dos adultos. (Ela pratica muito, pois não pára de falar da hora em que acorda até dormir. Às vezes eu acho que ela fala pelo simples prazer de ouvir a própria voz) E eu me pego a tentar "engarrafar" estes momentos, estes discursos, estas falas.
Enquanto isso, Joana observa tudo atentamente com seus imensos olhos castanhos enquanto cochicha:
- Ba ba ba ba - vai lentamente aumentando o volume até gritar as sílabas a plenos pulmões, para o caso de alguém não ter escutado bem.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Grotrian-Steinweg

Estou em férias. E em Porto Alegre. Assim, me permito alguns prazeres pequeno-burgueses. Como ir ao centro andando no meio da manhã. Fui até uma loja na Alberto Bins para mandar consertar um aparelho estragado. Uma viagem no tempo, isso de andar até o centro e mandar consertar algo. Ninguém mais conserta nada, muito menos no centro, depois do advento da China industrializada. Mas o caso é que o tal aparelho custaria mais de duzentos reais, e o conserto vai sair por trinta e cinco. No caminho, uns aposentados que jogavam dominó num boteco confirmavam a volta ao passado. Escuto Cartola e Lupicínio enquanto escrevo, pra dar o clima.
Além disso, em outra viagem no tempo, recebi uma pequena relíquia. Acharam, no meio dos papéis do vô, a nota de compra do piano, datada de 16 de dezembro de 1953, atestando que ele pagou cinquenta mil cruzeiros, com garantia de cinco anos. Também tinha um papel com recomendações de limpeza e conservação do instrumento. Não sei o quanto disso foi cumprido nos últimos 59 anos, mas o piano parece em bom estado. Não está muito afinado, mas recebi a recomendação de esperar 6 meses para afiná-lo, pois precisa se adaptar à nova sala.
Em 1953, o piano, novo, foi para uma casa com um casal e cinco crianças, a mais velha com 12 anos recém feitos, a mais moça com 4. Fiquei, à noite, a imaginar o evento da chegada do piano naquele mês de dezembro, a euforia da criançada e, sobretudo, do pai das crianças, que sempre amou aquele piano como um membro vivo da família. Se alguma das "crianças" se lembra do evento, memórias daquele dia (ou daquela época) são muito bem-vindas. Me parece que o piano foi dado em pagamento de honorários advocatícios, todo ou parte dele. Entramos em uma página da internet que calcula valores antigos em moeda de hoje. Há uma discrepância, dependendo do critério de correção. Pela inflação oficial da época, 50 mil cruzeiros equivalem a cerca de nove mil reais hoje. Mas pelo salário mínimo dá uns 25.000. Em qualquer um dos casos, para uma família com cinco filhos em que apenas o pai trabalhava fora, é uma quantia considerável de dinheiro. Considerando-se que não se parcelavam compras naquela época, e que possivelmente 4 dos 5 filhos estavam em escola particular, deve ter sido um certo rombo no orçamento doméstico. Mas não tenho dúvida que valeu cada centavo, depois de 59 anos.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

A Mão

Fico um pouco assustada com a falta de capacidade que as pessoas têm de resolver seus próprios problemas. Parece que, de uma hora para outra, tudo virou problema médico. Dia desses, entrou no posto um cidadão que queria atendimento por causa de uma cãibra na batata da perna. Cãibra! Deslocou-se da sua residência até o posto de saúde, esperou na fila com um calor de 35 graus e solicitou uma consulta porque estava com cãibra. Tudo isso me explicou a enfermeira, quando perguntei por que ela estava alongando o pé e a perna no meio da sala de espera, enquanto conversava com um paciente. Outra vez, no meio do inverno, com dúzias de pessoas realmente doentes e tossindo por todo o posto, apareceu um com o lábio rachado. Ou então a criança de 4 anos que atendi em uma madrugada de plantão com o joelho ralado. Chegou ao hospital com o ferimento ainda com terra, sequer tinham lavado. 
Acho genial a tal da acessibilidade universal. Mas para tudo há um limite. Essas pessoas não tiveram vó? Comentamos no posto, após o atendimento do segurado com cãibra, que este é um tipo de conhecimento universal que cabe às avós repassarem aos netos. Pertencem à mesma classe do chá de camomila para acalmar os nervos, chá de malva para a garganta, manteiga de cacau para não rachar o lábio e comer banana para evitar cãibras. Se funcionam ou não, não vem ao caso. O que importa é que as pessoas em determinada época faziam alguma coisa em casa antes de correrem ao médico. Lavavam o machucado na torneira, pintavam com mercúrio-cromo e botavam um Band-Aid. E aí, davam um beijinho e diziam:
- Quando casar, sara.
E a criança considerava-se curada, saía correndo e ia tratar de ralar o outro joelho. 
Talvez muito sintomática é uma propaganda do governo que eu considerei verdadeiramente apavorante, onde uma mão gigantesca coloca livros nas mãos das pessoas, abre o portão da escola para as crianças e joga uma bola para os jovens jogarem, com o slogam: "O Brasil está em boas mão, as mãos do povo brasileiro". Não é o que diz a imagem. O Brasil está nas mãos do governo. Se o governo coloca um livro na minha mão, é porque o governo escolheu o livro. E não eu. Eu me sentiria muito melhor se o espírito fosse "abra suas próprias portas, tome as rédeas do seu destino". O Estado deve prover saúde, educação, segurança, etc. Mas também cabe a cada cidadão buscar as soluções para a sua própria vida. E para os problemas do país. E não correr para o posto por causa de uma cãibra.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

A queda

Hoje fomos almoçar na cidade. Chegamos no restaurante e posicionamos o bebê-conforto da Joana em duas cadeiras, para não correr o risco de cair. Luísa foi para o cadeirão, e almoçamos tranquilamente.
Só que a Joana tinha outros planos. Entusiasmada com seu macaquinho de pelúcia vermelho, sacudia as pernas alegremente. E vigorosamente. E o bebê-conforto começou a balançar e, antes que tivesse tempo de qualquer coisa, emborcou-se no chão. A Joana estava devidamente atada com o cinto de segurança, mas mesmo assim, chegou a bater a cabecinha na queda. Mais que depressa, desvirei-a e soltei-a do cinto, peguei-a no colo e a examinei. Em seguida, tratei de acalmá-la, enquanto percebia todos os olhares de desaprovação de todo o restaurante voltados para a minha mesa. Nem preciso dizer que o meu almoço acabou, porque, quando parei de tremer, já não tinha nenhuma vontade de comer zucchini com queijo e salada de rúcula. Fiquei com ela no colo, curtindo aquela culpa imensa e dando graças a Deus que ninguém ali sabia que, ainda por cima, eu era pediatra. Pediatra e macaca velha, que faz questão de orientar sobre prevenção de acidentes em todas as consultas de rotina agendadas para mim.
Ouvi atentamente a todos os conselhos que me foram dados por metade dos clientes do restaurante, sobre levá-la ao hospital, que era logo ali, de não deixá-la dormir e de acordá-la de hora em hora. Agradeci, paguei a conta e saí correndo dali, louca para chegar em casa e checar cada milímetro dela para ver se estava realmente bem. Se houvesse algo errado, levaria para Porto Alegre, onde um neurologista e uma tomografia de crânio seriam mais facilmente disponíveis.
Sim, tudo estava (e está) bem. Ficou um pouquinho arroxeado na parte esquerda da testa, mas não ficou com "galo", não vomitou (o que é até estranho, porque ela vomita o tempo todo), não chorou histericamente, não teve convulsão, nem alteração de comportamento. Pupilas isocóricas e fotorreagentes, reflexos tendinosos profundos normais, tônus adequado. Sem perda de movimento nem assimetrias visíveis. Exame físico normal.
Dormiu um pouquinho no carro, mamou, tomou banho de piscina e sorriu para todos, como de costume. Minha Joaninha faceira de sempre. Agora, dorme tranquilamente no berço, mas já fui checar umas três vezes na última hora para ver se está respirando. Como de costume, o bebê está ótimo, ao contrário da mãe.
Na próxima ida ao restaurante, Joana ficará no carrinho, e o bebê-conforto, no carro.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Pinga-pinga

Ontem, véspera de feriadão, decidimos mudar a ida para Osório. Em vez de irmos de carro após eu sair do trabalho, com a estrada bombando, o marido foi com a Luísa de tarde, e eu fui com a Joana de ônibus às oito horas. Achei uma boa ideia, é estressante sair do trabalho e cair direto na estrada. Ele deixou a passagem comprada. Cheguei do trabalho, busquei a Joana na creche, dei banho nela, amamentei e, calmamente, peguei um táxi para a rodoviária. Achei que ia ser cheio, mas tranquilo. Imaginei o zumbido do ar-condicionado, todo mundo na boa, indo para a praia, eu dormindo na poltrona com a Joaninha no colo. Um pouquinho otimista, a minha visão. Cheguei na rodoviária uns 20 minutos antes, achei o box 27, de onde saía o pinga da praia. Sim, porque a passagem que ele comprou foi Porto Alegre-Torres via interpraias. O famoso pinga-pinga, que para em Osório e em todas as mais minúsculas praias até chegar em Torres. Mas até Osório é diretão, via free-way. A visão do inferno de Dante, a rodoviária, lógico, uma tigrada fumando, fedendo, e eu tentando proteger o nenê. Um calor duns 35 graus, mormacento e abafado, úmido como só Porto Alegre sabe ser, no auge da glória do verão. E a Joana grudada em mim, naquele canguru, que eu achei mais seguro, dada a falta de cinto de segurança no ônibus e a psicose da maioria dos motoristas. Pobre anjo suava, mas ria para todo mundo. Finalmente, estacionou uma rodonave novinha em folha, vidros inteiros e enormes, no box 26, Porto Alegre-Osório direto às 20 horas. Mas o meu box não era o 26. E o meu ônibus não era Porto Alegre-Osório. O meu era o 27 onde, segundos depois, estacionou uma carroça motorizada, com todos os vidros escancarados, o que anunciava a ausência do ar-condicionado. Porto Alegre-Torres via interpraias. O pinga da praia. Tentei argumentar com o motorista que, visto que eu só ia até Osório, seria mais conveniente pegar o bonitão do box 26, mas não teve acordo. Suspirei, entramos todos na carroça fedida e caindo os pedaços. E o motorista perguntou se eu tinha documento da pequena.
- Claro, está na minha carteira - respondi calmamente, enquanto um arrepio me passava pela espinha. É óbvio que eu tinha esquecido da certidão de nascimento dela.
Já sentada na poltrona, procurei a certidão da Joana, mas encontrei a da Luísa. No tempo em que eu só tinha uma filha e era 50% menos louca, eu carregava uma certidão de nascimento da minha (então) única filha na carteira para qualquer eventualidade. Comecei a imaginar o que faria se alguém me pedisse para ver o documento. Eu iria mostrar a certidão da Luísa, dois anos mais velha que o bebê de 6 meses que eu tinha nos braços:
- É que cuidamos dela como um bonsai, fica menorzinha, mais prático de carregar - diria para o policial que questionasse porque minha filha de dois anos pesa 7 kg e não sabe falar.
É lógico que ninguém pediu coisa nenhuma, e carreguei meu bebê clandestinamente até Osório impunemente.
No ônibus, sentou ao meu lado uma moça que, pelo sotaque, viera do interior para pegar o ônibus para a praia, e estava horrorizada. Tinha nojo até de sentar. Eu também, pra falar bem a verdade, mas não tinha muita escolha. Tentei evitar que a Joana encostasse no que quer que fosse que não fosse eu. E aí a geringonça começou a andar. Fiquei com pena de quem iria até Torres, chegando acho que lá pela 1h da manhã. Me lembrei daquela música da Maria-Fumaça:
"(...)Esse expresso vai a trote, mais parece um pangaré
Essa carroça é um jaboti com chaminé
Eu tenho pena de quem segue prá Bagé
Seu cobrador cadê meu troco? Por favor!...

E dá-lhe apito e manivela, passa sebo nas canelas
Seu maquinista, eu vou tirar meu pai da forca
Por que não joga esse museu no ferro velho
E compra logo um trem moderno japonês (...)"
E a viagem foi melhor do que eu imaginei. Saindo de Porto Alegre, o vento começou a ficar fresco, e quase passei frio. Fazia tempo que eu não andava com vento direto no rosto, sentindo os cheiros da estrada. É verdade que fumaça de óleo diesel queimado não é muito bom, sobretudo para o bebê, mas também senti cheiro de capim e de campo. Uma experiência quase nostálgica da infância, quando ar-condicionado no carro era privilégio de milionários, e íamos pela free-way engarrafada com o vento, o barulho, o cheiro e tudo o mais. E era uma delícia a promessa de um fim-de-semana de liberdade e diversão. Ar-condicionado é um conforto maravilhoso da vida moderna, mas às vezes isola um pouco do mundo real, onde faz calor e tem barulho e vento no rosto.
Talvez a filosofia toda tenha sido uma mera maneira de sublimar a falta de conforto na viagem, mas funcionou. Cheguei em Osório tranquila, Joaninha dormindo no canguru, aconchegada no meu peito. Dormiu muito melhor do que as últimas noites.
Agora estou de volta no Portinho, Joana junto, claro, pois ainda mama muito no peito. Amanhã trabalho e volto para Osório, meu pedacinho de paraíso, com lagoa, árvores e vento fresco. E, principalmente, a família reunida novamente.