segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Centro

Hoje tive que ir ao centro. Centro Histórico, está escrito nas placas. Resolvi ir caminhando. Adoro o centro. Dá uma sensação de continuidade da vida. É praticamente uma acrópole. Passei ao lado do Mercado Público, com seu cheiro de peixe inconfundível. Havia o pregador, de bíblia em punho, ameaçando os pecadores com o final dos tempos e o armagedon. Havia os índios peruanos a tocar flauta. Camelôs, malucos e engraxates. Adoro o centro. Um estímulo aos sentidos, ainda mais com o céu azul a contrastar com os prédios antigos e coloridos. Lembrei-me do caminho para a aula de inglês, há 25 anos. Descia do ônibus no Mercado e subia pela Borges até a Riachuelo. Ia ao Cultural. Naquele tempo, existia o Cultural e o Yázigi para estudar inglês. Nós fazíamos Cultural. Os anos 80 eram mais simples. Havia Toddy e Nescau. Lá em casa, tomava-se Nescau. Shampoo Colorama ou Palmolive, condicionador era Neutrox. Protetor solar era Coppertone. Fácil. Sem escolhas, sem frustrações.
Quando tiraram os terminais de ônibus do que hoje chamamos de Largo Glênio Peres, a cidade ganhou um novo espaço. Havia lugar para comícios, panfletagem, músicos e artistas de rua e pregadores. Uma praça seca. Um largo. Amplo. Simples.
O pregador estava na Esquina Democrática. Os peruanos, quase no Chalé da Praça XV. No lugar de todos eles, a Casa do Papai Noel! Uma construçãozinha bisonha, mistura de galpão crioulo com chalé suíço. Com neve de manta acrílica grampeada no telhado, com os 30 graus do quase-dezembro do continente austral. Não deu muito certo. Gente, celeumas à parte, o Centro Histórico não é shopping. Nada contra o espírito natalino. Mas... Esculhamba, mas não avacalha.


***
Joana está com 1 ano e 4 meses. Ela sabe dizer várias coisas, mas o melhor são suas caretas impagáveis. Joana anda impublicável, não por ser censurável, mas por ser indescritível. 
- Bô... - diz ela decepcionada quando algo acaba. Normalmente algo comestível.
- Papaiiii
- Mamaiii
- Sai! - essa ela aprendeu com a Luísa.
- É mé (meu)
- Me dá - outra da Luísa.
- Lulu
- Au-au - significa qualquer bicho que se mova. Quadrúpede, com bicos, penas ou implumes, tudo é au-au.
- Vovó, vovô (ela fala bem direitinho)
- Alô - enquanto segura qualquer objeto (literalmente) encostado ao ouvido, como um telefone. 

Só falta dormir à noite. No mais, sou a mãe mais feliz do mundo.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Dona Firmina

Ontem atendi em consulta a D. Firmina. É uma senhora magrinha, dos seus 67 ou 68. Aparenta mais, com muitas rugas no rosto emagrecido. Contara-me, há cerca de 6 meses, na consulta anterior, que morava sozinha. Trouxera junto uma receita do cardiologista que a acompanha há anos no hospital universitário. D. Firmina tem pressão alta, diabete, colesterol alto e obstrução das artérias do coração. Toma uma porção de remédios:

Captopril 25mg 2 comprimidos 3 vezes no dia;
Hidroclorotiazida 25mg pela manhã;
AAS infantil na hora do almoço;
Isossorbida 20mg meio comprimido 2 vezes no dia;
Sinvastatina 20mg 1 comprimido à noite
Omeprazol 20mg 1 comprimido em jejum
Metoprolol 100mg 1 comprimido 2 vezes no dia
Metformin 850mg 1 comprimido 3 vezes no dia.

É uma prescrição bem complicada. Há remédios duas ou três vezes no dia, alguns a serem tomados pela manhã, alguns à noite, outros em jejum e mais outros com a comida. Se eu tivesse que tomar diariamente essa montanha de comprimidos, certamente seria difícil de lembrar de cada um deles.
Na primeira consulta, notei que a glicose no sangue, medida na pontinha do dedo no posto de saúde, estava alta. A pressão, aferida no grupo dos hipertensos e diabéticos em acompanhamento na unidade semanalmente e anotada em uma tabelinha, mantinha-se sempre acima do desejável. Perguntei sobre a alimentação, sobre atividade física, na tentativa de descobrir o que ia errado. Não comia doces, não adoçava o cafezinho, abolira as frituras e a banha no feijão. Quase nada de sal, disse-me ela. E também parara com o macarrão instantâneo. A nutricionista já havia explicado tudo. Tinha dificuldade de caminhar por conta de dores crônicas nos joelhos. E não tinha dinheiro para pagar uma hidroginástica (sugestão do cardiologista).
- E os remédios, D. Firmina, como está tomando? - perguntei, coçando a cabeça.
- Tomo todos direitinho, doutora. Conforme o doutor do hospital mandou.
- A que horas toma cada um?
- Tomo um de cada pela manhã. Não é assim, doutora? É que não sei ler. Não sei o que escreveram neste papel - apontava para a receita.
Senti uma dor no coração. D. Firmina é o que se pode chamar de paciente aderente. Tem vontade de se cuidar, quer tomar os remédios prescritos. Na medida do possível, faz tudo o que pedimos. Mas recebera uma prescrição que, naquele momento, parecia uma peça de ficção científica. Lógico, como a pessoa iria memorizar o que tomar de cada vez? Peguei o bloco de receituário e caneteei:
captopril, metoprolol e metformin: 2 vezes no dia
Sinvastatina e AAS somente à noite
Omeprazol, isossorbida e hidroclorotiazida somente pela manhã;
E tudo um comprimido só.
Ora bolas! E já achei bem complicado assim. A estagiária de medicina que acompanhava a consulta ficou apavorada. Como eu iria tirar medicações se o controle estava ruim?
Não seria o caso de mandá-la de volta ao hospital para o cardiologista acrescentar mais coisas? Ela teria retorno somente em 4 meses no hospital.
Expliquei a ela que a prescrição mais simples, dividindo os remédios em dois blocos, seria mais fácil de tomar corretamente. E pedira à técnica em enfermagem da farmácia do posto que separasse os remédios por horário, para ficar mais fácil.
Na porta do consultório, na saída da primeira consulta, disse à D. Firmina que havia um projeto de alfabetização de adultos na Biblioteca Comunitára Ilê Ará (http://bibliotecaileara.blogspot.com.br), próximo à Cruz, em cima do morro. Ela deu de ombros, mas disse que iria visitar o local.
Na consulta de ontem, D. Firmina voltou com a pressão muito mais bem controlada. Recebera os parabéns até mesmo do cardiologista do hospital, que manteve a minha prescrição mais simples. Os exames bons e o diabete controlado. Cumprimentei-a pela melhora e, quando a acompanhava até a porta, ela me deu uma abraço e disse:
-Tenho que correr, doutora. Vou lá no Instituto de Identificação.
-Fazer o quê lá, D. Firmina?
-Vou buscar minha carteira de identidade nova. Agora já sei escrever o meu nome. Não sou mais analfabeta.
O Brasil demorou 68 anos para alfabetizar D. Firmina. Obrigada, Biblioteca Ilê Ará!

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Sete dias

Minha cabeça fervilha de ideias neste cinco de novembro. Dia da cultura, do Rui Barbosa e desta que vos escreve. Dei-me de presente duas horas sozinha na Feira do Livro (já mencionei isso antes, a Feira pra mim é melhor que Natal). Livros, livros e livros. Muitas ideias por todos os lados. Cercada de letras. Novidades, velharias, saldos de R$1,00. O final de tarde mais perfeito que alguém já imaginou nesta cidade. O céu azul com umas três nuvens. Uma brisa suave e refrescante. Os jacarandás com muitas flores, mas com um início de primavera verde que brota dos galhos. No final da caminhada na Praça da Alfândega, depois de chegar do Cais do Porto, sentei e comi morangos com creme de chocolate. Uma orquestra tocava uma valsa que me pareceu Chostakovich. Dificilmente o paraíso será melhor que isso. Na subida da Rua da Ladeira, já no caminho para casa, surgiu a metade da cúpula da Catedral, com sua cor marron-cobre a fazer contraste com o extremo azul do céu, a outra metade encoberta pelo cinza-preto do Tribunal de Justiça.
(Fui até o cais, na área infantil, só para ver o rio de pertinho. Recusei-me peremptoriamente a folhear qualquer livro que tivesse algum "pop-up", que emitisse som, ou que se transformasse em qualquer coisa remotamente peluda. Foi um final de tarde de completo egoísmo).
Saí, na verdade, com poucos livros na sacola. Dois do inspetor Maigret, que ainda não tinha, um inédito do Petit Nicolas, e um livro sobre o Fusca. Ganhei mais livros de presente de aniversário. Obras de ficção deliciosas que não sei quando conseguirei ler. Acho que vou voltar a ir para o trabalho de lotação, pois conseguia ler ao menos umas três páginas em cada trecho. Fora a parte politicamente correta.
Minha maior fantasia era que o mundo parasse para todos os outros. Congelasse durante, digamos, sete dias. Para todos, exceto eu. Já pensou? Sete dias para ler todos os livros que já comprei? Toda aquela montanha de conhecimento e prazer que espera uma pausa sem a sonolência perene? Um momento em que não haja a culpa de não estar dando a devida atenção para alguém. Sete dias de completo egoísmo literário. Na minha fantasia, eu não precisaria dormir, estaria sempre repousada e feliz, com um semblante tranquilo. Teria sete dias para ler. Somente ler seria necessário. Não haveria internet, televisão, celular. Comida pronta, casa organizada, nada para limpar ou fazer. Ninguém para atender. Nenhuma tarefa. Todos dormiriam em segurança e eu saberia que iriam acordar dentro de sete dias. Sem preocupações. Para os que dormissem, só teria se passado uma noite. Mas eu teria ganhado montanhas de conhecimento. Quem sabe eu poderia botar o sono em dia dormindo na fantasia de outra pessoa.
Falta meia hora para terminar o meu aniversário. Joana já deu o ar da graça, o marido ainda circula pela casa. Por enquanto, meu desejo é apenas um desejo. Tenho a esperança de que amanhã o rádio-relógio não despertará. O barulho dos carros terá cessado. Os cães dormirão, assim como os flanelinhas, os sabiás e outros habitantes barulhentos do meu bairro. Eu serei despertada pelo silêncio completo. E então, passado o susto e certa de que, com todos a dormir não preciso ir trabalhar, chegarei na minha estante e pegarei cada volume empoeirado e degustarei cada frase. A cada duas horas, poderia levantar, esticar as pernas, ouvir uma música, fazer alongamento. E de volta à leitura.
Não imagino nada trágico, como uma série de TV chamada "O Mundo Sem Ninguém", que mostra imagens fantasmagóricas de Chernobyl para ilustrar o que ocorre quando os homens vão-se embora. Não haveria Torre Eiffel desabada nem represas desassistidas. O mundo simplesmente estaria parado. E as pessoas tranquilamente adormecidas.
Pensando bem, acho que gostaria de várias temporadas fantásticas de mundo parado. Uma para ler, outra para organizar minha casa, mais uma para terminar todos os trabalhos manuais que já comecei e nunca acabei (acho que essa temporada teria que durar mais de uma semana). Não daria para ser tudo junto, pois sentiria, ao fim e ao cabo, muita falta das pessoas. Nunca tive vocação para a solidão. Poderia ser uma semana por ano. Já pensou?