quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Um ano de coisas de míope

Há um ano comecei este blog. É quase o meu diário. Reli algumas das postagens do início, aquele tempo em que eu escrevia diariamente (ainda escrevo quase diariamente, mas há textos que são impublicáveis). Lembrei-me das coisas de míope do Machado de Assis:

Como diria o Machado de Assis, "enquanto o telégrafo nos dava notícias tão graves (...) coisas que entram pelos olhos, eu apertei os meus para ver coisas miúdas, coisas que escapam ao maior número, coisas de míopes (...)
Acho que este blog é um pouco sobre coisas de míopes, coisinhas miúdas da vidinha privada de cada um de nós.
Coisinhas de míope das minhas menininhas que quero compartilhar com quem gosta das menininhas.

Compartilho então algumas coisinhas delas:
1. Joana já caminha, embora prefira engatinhar.
2. Luísa dorme sem bico há 6 dias (foi comprada por uma porção de quinquilharias que a "fada Clarabela" traz quando ela dorme sem o bico. Não sei como vou encerrar este negócio de fada)
3. A maior alegria da vida da Joana é caminhar de mão com a Luísa.
4. Luísa consegue pintar com lápis de cor respeitando os limites das linhas do desenho. E desenha figuras humanas perfeitamente identificáveis. Praticamente a reencarnação do Picasso.
5. Joana já fala mais de dez palavras. Seu maior divertimento é tirar todos os livrinhos da prateleira e jogá-los ao chão.
6. Elas estão lindinhas, não é por ser mãe delas...

E minha função de plantões encerra-se amanhã. Volto a ter vida de pessoa. Já pensou, fazer as unhas?
E à demain, que eu sigo em frente

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Fotos Antigas

Achei, dia desses, uma caixa de fotos antigas dos meus avós paternos. Por contingêcias da vida, não convivi tanto com eles como gostaria. Sei bem menos sobre suas histórias do que acho que deveria saber. Então, encontrar todas aquelas fotos foi ótimo. Descobri coisas fascinantes. A maioria das fotos se localiza no tempo entre 1923 e 1941. Já sabia que o vô, antes de ser médico (ele era pediatra), havia sido do exército. Mas não sabia que ele tinha ido ao Rio de Janeiro no trem do Getúlio Vargas em 1930 para amarrar os cavalinhos no obelisco, na Revolução. Tampouco sabia que ele havia lutado na campanha de 1932, em São Paulo. Há uma foto dele de barba, com cara de cansado, com a farda meio esfarrapada. Cara de veterano de batalha. Ele era oficial e aparece fardado em quase todas as fotos desta época. Gostava de fotografar. E ambos adoravam viajar. Há dezenas de fotos dos dois, individualmente e como um casal, em viagens. Foram por todo o interior, a Buenos Aires, adoravam o Rio de Janeiro. Fotos certamente históricas de todas essas cidades. Inclusive de Santa Maria, cidade onde ambos moravam e onde casaram e tiveram os filhos.
Mas o fascinante destas fotografias é que elas são, na maioria, fotos deles solteiros, antes dos filhos. Ao contrário de grande parte dos jovens da época, meus avós casaram-se tarde. Já passavam dos 30 anos. Além disso, a vó era mais velha que o vô. Isso, aparentemente, era um grande problema, pois ela fez uma mutreta no seu registro civil e rejuveneceu uns 3 anos. E o vô já havia envelhecido um ano, pois desejava ingressar no exército logo. Ela trabalhava em uma loja. Há um registro desta loja, com todas as funcionárias atrás do balcão, arrumadas e sorridentes. A vó entre elas. Parecia artista de cinema, de tão lindinha.
Eles tivera um longo período de juventude solteira, com muitos passeios, muitas fotos alegres em pracinhas, na saída da missa e durante o "footing" do final de tarde, com algumas "girls", segundo as legendas que o vô escrevia nas fotos. Várias fotos de lambe-lambe, o vô de farda e a vó com aqueles vestidinhos que elas usavam nos anos 1930. Sempre arrumadinhos. Os cabelos, as roupas, os chapéus. Ninguém saía na rua com coisas casuais, como calça jeans e camiseta. Era roupinha ajeitada, fatiota, sapato social, bolsinha e chapéu.
Na mesma caixa, havia o convite para a formatura do vô. Ele se formou na mesma faculdade de medicina onde eu estudaria e concluiria o curso exatamente 61 anos depois. Fiquei com uma nostalgia doída, uma coisa apertada, de não poder compartilhar com ele as idas e vindas da medicina e da pediatria em todos esses anos. Fiquei a ver os registros da ATM 1941 e a pensar em todos os lugares que ele andou e que eu também andei, seis décadas depois. Olhei as minhas fotos da ATM 2002/2. Incríveis semelhanças entre jovens futuros médicos das décadas de 1930 e 1990. Algumas diferenças, como o número de mulheres. Mas aquelas fotos de escadaria, todos de jaleco branco, são absurdamente iguais. Os olhares confiantes de quem iria mudar o mundo e salvar vidas todos os dias.
Agora, na véspera do dia do médico, estou em casa, guardada por Deus contando o vil metal. E salvando vidas. Mas sem o heroísmo e sem todo aquele glamour da época do footing e das girls.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Historinhas

Meus avós tiveram uma vida pacata e tranqüila, ao menos na época em que eu me lembro deles. Mas nunca deixaram de ter senso de humor. O anedotário da familia inclui historinhas prosaicas. Algumas bonitinhas.
A Wó era talvez a pessoa mais gentil que eu conheci. Incapaz de uma grosseria ou de qualquer ato que pudesse trazer prejuízo a quem quer que fosse. Mas nunca foi trouxa. Uma vez, foi comprar uma carne para o almoço. Estava pensando num pedaço de alcatra ou que sabe um coxão de dentro. Na fila do açougue, a mulher na sua frente pediu um pedaço de filé mignon. O rapaz mostrou a ponta da peça que já estava aberta.
-Ah, não, não vou querer a ponta. Não podes abrir outra peça?
-Não, senhora, só posso abrir outra quando esta acabar.
-Então vou esperar alguma outra pessoa comprar a ponta para comprar o inicio da outra peça.
A Wó não gostou daquilo. Não achou direito esperar o próximo trouxa comprar a parte que ela não queria para ela ficar com o bem bom. Mas, sendo ela uma senhora de fino trato, não iria bater boca com a mulher. Chegando a sua vez, falou decidida:
-Vou querer o filé mignon - a outra já se alegrou.
-A ponta? -perguntou o açougueiro.
-Não, senhor, vou querer uma peça inteira.
A outra cliente fechou a cara, mas não pode dizer nada. Deve ter sido um certo rombo no orçamento da semana, mas com certeza valeu cada centavo. Após embrulhar o filé inteiro para a Wó, o açougueiro virou-se para a cliente espertinha e perguntou:
-E aí, dona, vai querer a ponta? Porque a outra freguesa levou a última peça inteira. Só sobrou essa pontinha...
A Wó não ficou para ouvir a resposta. Havia sido suficiente. Saiu do açougue triunfante. E a familia comeu filé a semana inteira.

Do vô, a que eu mais gosto é a da xícara de cafezinho do Tribunal de Justiça. Ocorre que a Wó colecionava xícaras de cafezinho. Era linda, a coleção. Tinha umas chinesas, com uns desenhos no fundo, outras de bancos ou de viagens que as pessoas faziam e levavam para ela como souvenir. Um dia o vô, tratando de algum assunto causídico no Tribunal de Justiça, tomava seu cafezinho e passou a observar a xícara. Perguntou ao interlocutor, algum juiz importante que certamente havia sido seu aluno na Faculdade de Direito (a Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre, ele diria):
-Escuta, o que aconteceria comigo se eu, acidentalmente, deixasse cair essa xicrinha no chão e ela quebrasse?
-Oh, não aconteceria nada, acidentes acontecem.
-E se eu deixasse a xicrinha cair acidentalmente no bolso do meu paletó? - perguntou antes de explicar que sua senhora colecionava as tais xícaras.
O desembargador riu e, evidentemente, deu o objeto de desejo para ele.

A xícara está na cristaleira da minha casa. Olho para ela e me lembro dessa historinha prosaica. Recordei-a e quase enxerguei o vô a chegar na sala da casa, sentar-se no sofá abaixo da enorme imagem do Sagrado Coração de Jesus e, tirando a boina da cabeça, dizer:
-Estou pregado! Bebel, me traz meio copo d'água e o pinga-pinga verde? E a atensina, que está em cima do bureau. Depois, pedia para alguém (provavelmente eu mesma) levar os sapatos para cima e trazer os chinelos de couro que ficavam na mesinha de cabeceira. E o relógio da varanda estaria batendo cinco horas.
Ui, doeu a saudade.