quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Historinhas

Meus avós tiveram uma vida pacata e tranqüila, ao menos na época em que eu me lembro deles. Mas nunca deixaram de ter senso de humor. O anedotário da familia inclui historinhas prosaicas. Algumas bonitinhas.
A Wó era talvez a pessoa mais gentil que eu conheci. Incapaz de uma grosseria ou de qualquer ato que pudesse trazer prejuízo a quem quer que fosse. Mas nunca foi trouxa. Uma vez, foi comprar uma carne para o almoço. Estava pensando num pedaço de alcatra ou que sabe um coxão de dentro. Na fila do açougue, a mulher na sua frente pediu um pedaço de filé mignon. O rapaz mostrou a ponta da peça que já estava aberta.
-Ah, não, não vou querer a ponta. Não podes abrir outra peça?
-Não, senhora, só posso abrir outra quando esta acabar.
-Então vou esperar alguma outra pessoa comprar a ponta para comprar o inicio da outra peça.
A Wó não gostou daquilo. Não achou direito esperar o próximo trouxa comprar a parte que ela não queria para ela ficar com o bem bom. Mas, sendo ela uma senhora de fino trato, não iria bater boca com a mulher. Chegando a sua vez, falou decidida:
-Vou querer o filé mignon - a outra já se alegrou.
-A ponta? -perguntou o açougueiro.
-Não, senhor, vou querer uma peça inteira.
A outra cliente fechou a cara, mas não pode dizer nada. Deve ter sido um certo rombo no orçamento da semana, mas com certeza valeu cada centavo. Após embrulhar o filé inteiro para a Wó, o açougueiro virou-se para a cliente espertinha e perguntou:
-E aí, dona, vai querer a ponta? Porque a outra freguesa levou a última peça inteira. Só sobrou essa pontinha...
A Wó não ficou para ouvir a resposta. Havia sido suficiente. Saiu do açougue triunfante. E a familia comeu filé a semana inteira.

Do vô, a que eu mais gosto é a da xícara de cafezinho do Tribunal de Justiça. Ocorre que a Wó colecionava xícaras de cafezinho. Era linda, a coleção. Tinha umas chinesas, com uns desenhos no fundo, outras de bancos ou de viagens que as pessoas faziam e levavam para ela como souvenir. Um dia o vô, tratando de algum assunto causídico no Tribunal de Justiça, tomava seu cafezinho e passou a observar a xícara. Perguntou ao interlocutor, algum juiz importante que certamente havia sido seu aluno na Faculdade de Direito (a Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre, ele diria):
-Escuta, o que aconteceria comigo se eu, acidentalmente, deixasse cair essa xicrinha no chão e ela quebrasse?
-Oh, não aconteceria nada, acidentes acontecem.
-E se eu deixasse a xicrinha cair acidentalmente no bolso do meu paletó? - perguntou antes de explicar que sua senhora colecionava as tais xícaras.
O desembargador riu e, evidentemente, deu o objeto de desejo para ele.

A xícara está na cristaleira da minha casa. Olho para ela e me lembro dessa historinha prosaica. Recordei-a e quase enxerguei o vô a chegar na sala da casa, sentar-se no sofá abaixo da enorme imagem do Sagrado Coração de Jesus e, tirando a boina da cabeça, dizer:
-Estou pregado! Bebel, me traz meio copo d'água e o pinga-pinga verde? E a atensina, que está em cima do bureau. Depois, pedia para alguém (provavelmente eu mesma) levar os sapatos para cima e trazer os chinelos de couro que ficavam na mesinha de cabeceira. E o relógio da varanda estaria batendo cinco horas.
Ui, doeu a saudade.

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