sábado, 31 de dezembro de 2011

2012

Acho que teremos um Ano Novo meio com cara de hemisfério norte. Tá, não exagera, não chega a nevar, nem perto. Mas não dá pra botar aqueles vestidinhos leves e fresquinhos das noites tropicais dos anos anteriores. Chove, faz friozinho e, óbvio, venta. Venta bastante. (Estamos em Osório. Sempre venta em Osório). Um dia daqueles em que meu pai diria:

- Que dia glorioso! - enquanto admirava as nuvens plúmbias pela janela.

O último dia de um ano marcante. O ano em que nasceu a minha segunda filha, e também o ano que me despedi de uma outra segunda filha, esta 93 anos mais velha que a minha. Um dos maiores referenciais de mãe, de mulher e de pessoa que conheci, também conhecida como Wó. A minha vó.

Não tem como escrever hoje, 31 de dezembro, e evitar o clichê. Nem vou tentar. Esta é uma postagem cheia de lugares comuns e reflexões baratas de final de ano.

Já saiu a Mega Sena da virada e eu não fiquei rica, disso eu já sei. Mas não sei muito mais coisa sobre 2012. Dizem que é o ano em que o mundo vai se acabar (mas também, a cada cinco ou seis anos, o mundo vai acabar no ano que vem, já faz um tempo). Não sei se vou morar na mesma casa, nem se vou estar no mesmo emprego. Espero que a minha família continue inteira. Gostaria de uma moratória nas perdas. Foram muitas baixas nos últimos quatro anos. Há muita gente muito importante que não está mais aqui. Aos poucos eu vou perdendo minhas referências e modelos. O assustador é me tornar eu mesma a referência e o modelo para outras pessoas.

E, por qualquer motivo, esta é a época em que a saudade dói mais. Mesmo a saudade daqueles que não davam muita bola para essas datas. Estamos aqui na nossa cabana em Osório, só a família nuclear. Além de todos os fantasmas, é claro. Provavelmente, passaremos a meia-noite com as crianças no colo, acalmando-as por causa do barulho dos fogos de artifício.

Enfim, a duas horas do final do ano, vou deixar o link de um sambinha do Assis Valente, na interpretação da Carmen Miranda.

Feliz Ano Novo a todos os leitores deste blog, fantasmas ou não. E que o mundo não se acabe em 2012.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Leite

Chegamos há pouco em Osório. Viemos passar o Ano Novo aqui. O marido, em recesso do judiciário federal, empacotou tudo, carregou o carro e foi me buscar no trabalho no final da tarde. Quase 3 horas depois, chegamos aqui. Eu não consigo descrever o tamanho do meu cansaço. Estar em Osório é maravilhoso. Só tenho muita saudade do tempo em que era criança e tudo o que eu tinha que me preocupar era com as roupas da minha mochila. Ser A Mamãe dá um pouco mais de trabalho. Luísa passou mal e vomitou na chegada à cidade. Mais 3 km e estaríamos em casa, mas o carro, a cadeirinha, toda a roupa dela, a minha e a do marido ficaram sujas. Coitadinha. Ela passando mal e eu pensando na trabalheira que teria. A única coisa boa é que o enjoo passou assim que ela terminou de vomitar e quando chegamos em casa ela já estava sorrindo e brincando.
Daí eu amamentei a Joana, desmontei a cadeirinha do carro, tirei o forro e lavei-o. Tinha que arrumar as camas, produzir algo para a Luísa comer, dar banho nas crianças e ir ao supermercado. Coube à Joana e a mim a parte do supermercado. Saímos às 8:40 de casa. E chegamos no Nacional 5 ou 10 minutos antes de fechar. É que em dia de semana, Osório é só uma cidade do interior, e o supermercado fecha às 9. Só abre até as 11 na sexta e no sábado, quando vira praia. Consegui comprar o básico: pão, patê, fruta, massa, shampoo, biscoito, suco e... esqueci do leite. Saí do caixa quase nove e meia, o super já tinha fechado. Entrei no carro e lembrei da droga do leite. Que espécie de mãe de família esquece de comprar leite? (aparentemente, uma espécie muito cansada) E agora, dirigia pela cidade, a caminho de casa. Nem dez horas e tudo estava vazio em plena quinta-feira (meu bairro em Porto Alegre parece um formigueiro nas quintas à noite, é como se o fim-de-semana já tivesse começado). Os outros supermercados fecham às oito. O Nacional é o grande, que fecha às nove. Parei em uma loja de conveniência do posto de gasolina e, quase emocionada, avistei o leite. Tinha até o Ninho da Luísa. Comprei os dois litros de leite mais caros da história bem a tempo, porque a loja do posto fechava às dez. Entrei no carro, botei os leites nas sacolas do Nacional e, missão cumprida, o marido jamais descobrirá que eu paguei R$3,00 por cada litro de leite.
Depois, ainda dei banho na Joana, amamentei-a novamente, coloquei-a na cama (Luísa já dormia quando eu cheguei), comi, tomei banho e encerro este dia muito cheio e cansativo com esta postagem. Não há nada melhora para desacelerar e botar os pensamentos em ordem do que escrever.
E à demain, que eu sigo em frente.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Já devo ter escrito sobre isso, mas há algo fascinante na maneira como a criança brinca. É algo totalmente espontâneo e acontece com o tempo. Primeiro, eles agarram qualquer objeto e metem-no na boca. Logo, começam a chacoalhar e explorar o brinquedo. Geralmente há risadas quando há interação com outra pessoa, normalmente o adulto. Próximo ao segundo aniversário, a mágica acontece. A brincadeira deixa de ser puramente exploração e vira fantasia. E começam a brincar sozinhos. A boneca vira uma pessoa, os pratinhos e panelinhas enchem-se de "comidinha", todos os bichos e bonecas vão "nanar".
Mas o fascínio maior para mim é quando um objeto aleatório ganha vida e se transforma.
Ontem, minha filha de 2 anos e meio estava começando a ficar entediada com seus brinquedos "convencionais", todos espalhados pela sala. Então, ela avistou um enorme saco de pano cor-de-laranja. Ninguém propôs nada a ela. Sua tia tocava piano e eu amamentava a irmãzinha. Ninguém lhe estava dando grande atenção. Ela decidiu que o pano era um carro. Esticou-o no chão, sentou-se em cima e andou no carro. Depois, virou uma moto. Mudou a posição das pernas e "montou" na moto no chão da sala. O pano virou vestido, roupa de bailarina, piscina e até um piano! Tudo narrado em alto e bom som:
- Agora eu tô na piscina - enquanto rolava-se em cima do saco de tecido.
- Olha, eu vou tocar aqui no meu piano - e tamborilava os dedos como se tocasse junto com a tia.
A brincadeira durou cerca de 45 minutos. E o pano não "sabe" fazer nada. Não há botões para apertar nem luzes a piscar e nem tem uma etiqueta escrito "made in china". Também não fala nenhuma frase e tampouco move-se sozinho. É somente um pano.
Mais tarde, quando ela já tinha dormido, enquanto juntava os brinquedos da sala (aqueles com botões, música e luzinhas, escrito fisher-price na etiqueta), filosofei sobre os excessos da nossa era. É que ela adora os botões e as luzinhas. Mas também é capaz de divertir-se com um simples pano, ou bolhas de sabão, ou o balão que ganhou no dia da vacina.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Natal

Não foi um Natal muito feliz para mim. Ainda sinto muita falta da Wó e do vô. E o Natal era a festa deles e da família que eles iniciaram. Ainda assim, preciso dizer, acho que foi um Natal bom para as minhas meninas. Possivelmente este será o primeiro Natal que Luísa terá alguma recordação, talvez flashes confusos, num futuro distante. E foi o primeiro Natal da Joana. Elas estavam felizes, Joana sorrindo com sua boca sem dentes e sua linguinha de fora, sem nunca reclamar de nada. E a Luísa com aqueles olhos brilhando ao abrir os presentes e receber toda a atenção da festa. Ganhou uma casinha de bonecas dos avós, uma porção de livrinhos e brinquedos, além de roupinhas lindas. Luísa comeu camarão e torradinhas com patê, como se fosse a coisa mais natural do mundo ter dois anos e desfrutar da alta gastronomia. Só faltou pedir espumante (felizmente, contentou-se com suco de uva). O clima estava ameno, tanto a temperatura como o astral das pessoas. Hoje é que eu me senti pior. Chorei com um diálogo bonitinho no carro, indo almoçar com a família na casa da minha mãe. Luísa um pouco enjoada, sugeri que ela olhasse para as nuvens:
- As nuvens? É no céu? A bisa está no céu? Dá pra ver a bisa?
- Sim, querida, a bisa está no céu.
- Pode dar feliz Natal pra bisa?
- Claro que pode!
- FELIZ NATAL, BISA - grita Luísa dentro do carro a plenos pulmões, olhando para o teto. Justifica-se em seguida:
-É que o céu é longe, tem que gritar para a bisa ouvir.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Nobreza

Eu evito trazer temas polêmicos para esse blog, porque ele tem o propósito de relatar as minhas coisinhas de míope e a minha vidinha pequeno-burguesa. Mas não adianta, está nos genes. A polêmica e a rebeldia correm soltas nas veias das famílias Becker e Lovato.
Há anos que já reparei que o Brasil sente falta da nobreza. Os brasileiros adoram reis e rainhas (Rei Roberto, Rainha dos Baixinhos, Rei do Futebol e por aí vai). O que recentemente me ocorreu foi que o Brasil, na verdade, segue tendo sua nobreza, muito parecida com a dos tempos do Império. Só que o nome dessa nobreza é Poder Judiciário. Vivem e trabalham em palácios. Se os cargos não são vitalícios, as aposentadorias milionárias são. E, se seus filhos não herdam os cargos, fazem parte de um minoria que pode dar-se ao luxo de serem sustentados pelos pais até os 30 anos para estudar para concursos públicos. (Não tiro o mérito do estudo para quem quer que seja, mas acho que há poucos filhos de garis e faxineiras ingressando na magistratura, mesmo que isto não seja culpa somente dos juízes). São intocáveis. Não me entendam mal, sou francamente a favor de um judiciário independente, mas para tudo existe um limite. Estes senhores recusam-se a ter qualquer órgão que os fiscalize, como se o título de juiz garantisse idoneidade moral. Ora, existem juízes corruptos como existem médicos, governadores, garis e guardas de trânsito corruptos. E existem juízes que, tecnicamente não são corruptos, pois não infringem a lei, mas são moralmente comprometidos com seus altos salários e privilégios. Com um golpe de caneta, decidem administrativamente que os funcionários do judiciário devem receber determinada quantia por uma suposta indenização ou correção monetária de algum plano econômico de vinte anos atrás. E que ninguém investigue nada, porque isto é crime e dá cadeia. Por que eu, uma simples cidadã, não tenho direito de saber o que é feito do dinheiro dos meus impostos? Dinheiro este que deveria ser aplicado também em outras áreas. Por exemplo, em educação básica, para o filho da faxineira poder chegar a ser juiz um dia.
Aparentemente, a nobreza (como qualquer nobreza) não quer perder seus privilégios. E também não quer muita gente tendo acesso aos mesmos privilégios que eles. Por tudo isso, eu escrevi este texto para louvar a coragem desta senhora chamada Eliana Calmon, corregedora do Conselho Nacional de Justiça, que ousa bater de frente com a nobreza brasileira. Temo por ela, acho que não vai durar muito. Quando se trata de defender privilégios, a democracia brasileira rapidamente descamba para um faroeste tupiniquim.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Licença poética 2

O ano é 1918. 27 de julho. É inverno e faz um frio terrível . O fogão à lenha está ligado, mas um minuano gelado entra pelas frestas da madeira da casa. Uma menina está dormindo debaixo do seu cobertor de lã de ovelha. Quatro anos. No outro quarto, sua mãe começa a sentir as dores. Já estava passando da hora. Há alguns anos, tivera outra guriazinha, que morrera de difteria com poucas semanas. O que viria agora? Passam-se muitas horas (já é dia 28), a parteira ajudando, o marido nervoso, fumando um palheiro atrás do outro, aquela urgência de fazer força. E a dor. Muita dor. A criança parece empacada. Presa. A parteira examina, apalpa a barriga enorme. Está sentada. Tem que chamar o médico.
- Tenta não fazer força, ouviu. Vou tentar virar o nenê.
Empurra daqui e dali, enquanto a mãe urra de dor. Não parece ter efeito. Continua sentada. Está muito baixo, não dá mais tempo de virar. Vai ter que nascer assim.
Chega o médico. Faz um pouco de força, consegue enxergar as nádegas e as partes íntimas. Outra menina. Finalmente consegue passar, os bracinhos esticados ao lado da cabeça, um grito de dor da jovem parturiente. Choro estridente. A parteira seca, esfrega, limpa. Enrola em um cobertor e entrega para o médico. O bebê passa bem, está rosado, respira, mas não se acalma, deve ter dor. O médico observa, apalpa, examina. A criança parece ter quebrado os bracinhos durante o parto, por causa da posição sentada. Prescreve uma infusão para a dor. A mãe, uma linda jovem de origem italiana de 20 anos, bota no peito, sorrindo aquele sorriso exausto de quem acabou de dar à luz. A pequena se acalma, consegue mamar. Quando fica imóvel, a dor parece passar. O doutor orienta enfaixar os bracinhos. Quando deixa a casa, já na madrugada do dia 29 de julho, o chão, as árvores, a casa, a charrete, tudo está branco. Havia nevado toda a noite. Deixa o armazém, cenário da jornada épica. O dono está orgulhoso e olha para a porta do quarto onde sua filhinha mama tranquilamente. A irmãzinha levanta para espiar o bebê. O médico suspira. Sensação de dever cumprido. Mais uma vidinha começa. Tomara que seja longa, depois de tanto sofrimento de mãe e filha para nascer.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Água de Colônia


                Giovanni Maria Farina era um perfumista italiano que estabeleceu-se em Colônia, na Alemanha, no século XVIII. Ele criara um perfume de muito sucesso, que passou a chamar, em homenagem à sua cidade de escolha, de “água de Colônia”. A fábrica por ele fundada em 1709 é a mais antiga ainda em funcionamento. Em 1794, durante a invasão napoleônica, os soldados franceses mudaram a numeração das casas para facilitar a localização dos endereços. No prédio onde funcionava a fábrica da Água de Colônia, pintaram o número 4711.  
                O 4711 foi o perfume de grande parte da nobreza, incluindo Napoleão Bonaparte, dom Pedro I e a princesa Diana. Além deles, Goethe, Beethoven, Voltaire, Romy Schneider, Indira Gandhi e tantos outros.
                Também foi o perfume predileto do meu avô Egberto, que gostava de coisas autênticas e legítimas. E nada é mais autêntico do que a “ECHT KÖLNISCH WASSER”, fabricada na Glockengasse, 4711, Colônia, Alemanha. O vô, um romântico incorrigível, presenteava minha vó Wanda com vidros de 4711. Também era o perfume dela.
                Pois o 4711 tornou-se meu perfume predileto também. Sinto o cheiro da Wó arrumada para sair para algum evento todos os dias de manhã, quando coloco algumas gotas nos punhos e no pescoço antes de sair para o trabalho. E levo um pouquinho deles comigo durante o dia todo.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Saúde Mental

Hoje, sexta-feira, é dia de atendimento em saúde mental no posto. Os dois médicos atendem pacientes com problemas da alma ou do pensamento. A maioria com transtornos psiquiátricos em uso de psicofármacos. A velha história do copo meio cheio ou meio vazio. A agenda de saúde mental atende pessoas com doença mental. Hoje tinha tudo, menos saúde mental dentro do posto. Começava na sala de espera: um conversando com o amigo imaginário, uma gorda senhora de cabelos desgranhados a olhar para o vazio, enquando a acompanhante fazia crochet. Um senhor que, mudo, balançava-se para frente e para trás. Outra dormia encostada em uma parede.
É muito difícil o atendimento psiquiátrico pelo SUS. Obviamente, não é um negócio muito lucrativo atender psiquiatria no serviço público. Em algum hospital escola até tem algum glamour, mas no posto da esquina ninguém quer. A prevalência estimada de doença mental na comunidade em que eu atendo é de cerca de 20 a 25%. O que gera uma população de cerca de 3.500 pessoas. Muitas delas, provavelmente medicadas. E as receitas de psicofármacos devem ser renovadas mensalmente. Fora tudo o que temos para atender diariamente, ainda existem as tais das receitas.
Mas este não é o problema. O problema é que não somos psiquiatras. Uma coisa é uma senhora de meia idade com uma crise vital, que precisa de um par de orelhas e reforço positivo. Outra bem diferente são todos os esquizofrênicos graves, que enxergam coisas e ouvem vozes que não estão lá. Todos os pacientes com transtorno bipolar, que enlouquecem a si e às suas famílias. Todos os drogaditos que querem e não conseguem parar. Todos os que não respondem bem aos remédios antipsicóticos disponíveis na rede pública (mais ou menos o que se usava em 1950).
E todas aquelas coisas legais que a gente vê no site do Ministério da Saúde, como os NASF (núcleos de apoio à saúde da família) e os CAPS (centros de atenção psicossocial) são ficção científica na zona leste de Porto Alegre. Todo o apoio que temos é de uma equipe de psicólogos e um psiquiatra do município que vão ao posto de vez em quando conversar sobre os casos mais graves e, talvez, fazer algum encaminhamento para a (escassa) rede de atendimento psiquiátrico ambulatorial da cidade. Fazem isso com competência e boa vontade, mas não são santos milagreiros. Em casos de surtos graves, mandamos para o Postão da Cruzeiro, a única emergência psiquiátrica pública da cidade.
E eu acabo todas as sextas-feiras com um pouco menos saúde mental do que na semana anterior. E com muito menos fé no gestor da saúde pública da cidade de Porto Alegre.
Desculpem o desabafo. E à demain, que eu sigo em frente.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Licença poética


                Formavam um lindo casal. O protótipo do casal moderno. Os dois trabalhavam fora. Por alguns poucos meses eram o que hoje se chama de “dink” – double income, no kids. Pouquíssimos meses. Na verdade, três. Moravam em um lindo apartamento no centro. Moderno, isso de morar em apartamento, com elevador, porteiro e tudo o mais. Linda vista para o Guaíba.
                Haviam casado no início do ano, nos primeiros dias de janeiro. E se mudaram para o apartamento. Era uma época em que as pessoas primeiro casavam e depois se mudavam.  Ela lecionava, ele, advogado. Pouco após o início das aulas, sentiu-se mal pela primeira vez. Saiu da sala de aula às pressas para não vomitar na frente dos alunos. Não se fazia exame de urina naquela época, exame algum. As outras professoras, que tinham ido ao casório, trocavam risinhos pelos corredores:
                - Será que já está? Não custou muito, hein? - cochichavam, entre risos.
                Parecida ter perdido peso (se é que era possível perder algum dos seus 45 kilos). As blusas com os botões meio esgaçados, os seios visivelmente maiores. E, ela sabia (e só ela sabia), não tinha sangrado no mês anterior.
                Uma onda de felicidade e contentamento tomava conta do seu pensamento. Milhares de ideias na mente. Queria contar pra todo mundo. Não tinha bem certeza, mas quase. Só que aquele enjôo era muito chato. Será que era normal? Tinha uma irmã mais velha, mas que ainda não tinha filhos. As colegas de trabalho consolaram:
                - Está tudo bem, só não deves ficar em jejum. Quando a mulher enjoa é porque o nenê é forte – disse uma, mãe de três filhos.
                - Já tens desejos? Quando fiquei grávida tinha vontade de comer rabanete – contava outra, com sua barriga já bem adiantada – E ontem o coitado do André Luiz teve que ir às pressas ao Mercado comprar um salame, lá na banca do Holandês. Já pensou se nasce com cara de salame?
                As outras riam. E ela ficava quietinha, um sorriso de Monalisa, concentrando-se para não vomitar na sala dos professores. Graças a Deus o marido não fumava. Nada a enjoava mais do que o cheiro do cigarro.
                E os meses passaram, a barriga crescendo devagar, no meio daquele corpinho enxuto. E chegou o mês de maio. E todo o céu veio abaixo ao mesmo tempo, como um dilúvio bíblico. As notícias chegavam pelo rádio e eram assustadoras. Não havia o que comprar, o Mercado Público debaixo d’água. Os bondes não funcionavam. Havia barcos navegando pela Praça XV. E então, foi-se a luz. Ela sozinha em casa, grávida o suficiente para estar cansada e com medo. O céu escuro como noite, embora fossem apenas cinco da tarde. Como iria subir e descer doze andares de escada? E o nenê? Mulher grávida não devia se exercitar. Ela sabia muito bem disso. Finalmente, ouviu a chave a girar na porta. Ele conseguira voltar do escritório. Molhado da cabeça aos pés, apesar do guarda-chuva e das galochas, contava que não havia eletricidade em parte alguma. Estava esbaforido de descer as escadas do escritório, caminhar nas ruas alagadas e subir para o apartamento. Ele vestiu uma roupa seca, ela terminou de preparar o café. Entreolharam-se, procuraram as velas e lamparinas, abriram a cortina e ficaram olhando a chuva cair, inclemente, incessante. Contínua. Não se enxergavam ruas na parte baixa do Centro. A cidade virara Veneza. Ele se lembrou de sua viagem à Europa, alguns anos antes de casar. Ficaram namorando suavemente durante aquela noite, curtindo a barriguinha a crescer e imaginando a família que começavam. Queriam oito filhos. Olharam em volta do seu pequeno apartamento (provavelmente enorme para os padrões atuais) e riram, ao imaginar oito crianças correndo por ali. Começaram a pensar na casa que comprariam após o nenê nascer. Se desse outra enchente, não haveria toda a escadaria para se preocupar.
                No dia seguinte, ela e o marido desceram calmamente as escadas e, aconselhadas pelo médico da família, instalaram-se na casa do cunhado, sem escadarias para por em risco o início da sua grande família.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Advento


                Decidi montar, no dia 30 de novembro, um Calendário do Advento. É uma coisa do Playmobil que eu ganhei da minha prima há quase 10 anos. Vem um calendário, uma porção de caixinhas de papelão, uma para cada dia para encaixar na cartolina do calendário. E uma porção de bichinhos e brinquedinhos, um dentro de cada uma. Na época, eu não era casada e muito menos tinha as filhas. Sequer conhecia o meu marido. Amei o presente, foi ótimo, ela trouxe da Alemanha aquela baita caixa. Eu adoro playmobil, mesmo que já tenha crescido. Era, junto com o Lego, um dos meus brinquedos favoritos. Uma coisa meio O Mundo de Sofia. Existia um universo paralelo dentro do meu quarto quando eu brincava com aquilo.
                De qualquer maneira, achei que a Luísa iria aproveitar. Ela tem 2 anos e meio, mas já não põe as coisas na boca e brinca direitinho com miudezas. Ela, inclusive, adora coisinhas pequeninas (herança do bisavô Berto?) Montei as caixinhas no calendário e, dia primeiro de dezembro, abri a primeira caixinha com ela quando chegou da creche. Expliquei como funcionava e ela adorou. Claro que quis abrir todas as caixinhas, mas eu disse que era uma por dia, para esperar o Natal e o Papai Noel. Ela até aceitou numa boa.
                Agora, todos os dias depois da creche, ela chega em casa e abre uma caixinha. Vem pelo caminho me dizendo:
                - Qual é o “lúminus” de hoje? O que é que tem dentro? – “lúminus” significando número.
                Chegamos em casa e abrimos a caixinha com o “lúminus” do dia. Em cada caixinha tem um brinquedinho do playmobil, uns bichinhos, um arbusto, umas “comidinhas” dos bichos e, claro, um playmobil fantasiado de Papai Noel. Ainda não chegou este dia. Acho que é aí pelo dia 20.
                O fato é que ela já brincou com todos os bichinhos e com os brinquedos de Natal que eu botei debaixo da árvore para ela brincar. Já deu comidinha para todos e misturou a bonequinha Polly junto. Até as miniaturas do Asterix e do Obelix que estão no balcão da sala já brincaram com os animais do Advento e com os da árvore de Natal.
                É um negócio meio Toy Story. Os velhos brinquedos ganham vida, juntos com os novos e moderninhos. E o universo paralelo continua, ao menos por mais uma geração.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Hoje atendi uma senhora grávida do seu décimo-primeiro filho. Rapidamente, fez questão de me dizer:
- Criei todos, doutora. E todos do mesmo marido.
Tinha mais ou menos 8 meses, mas ela já estava em trabalho de parto, com várias contrações durante a consulta e 4 centímetros de dilatação. Mandei-a ao hospital, pois após 10 partos vaginais, imagino que este vá sair andando. E o posto de saúde não é um bom lugar para ganhar nenê. Outra gestante, esta no segundo filho, também foi ao hospital, desta vez por sofrimento fetal agudo. É estranho. Passo semanas ou meses atendendo consultas de pré-natal sem mandar ninguém ao centro obstétrico. De repente, duas no mesmo dia. Pela manhã, havia atendido dois jovens com possível doença hipertensiva. Incomum para pessoas de menos de 30 anos. Um em cada consulta, sem relação alguma entre eles. Me lembro de um velho professor que costumava afirmar que as doenças sempre vêm aos pares. Mas o que mais me cansou hoje foi a diversidade do atendimento. Entre um e outro hipertenso, criança com febre, uma ferida no pé de uma diabética grave e uma provável gestação em uma menina de 13 anos. À tarde, no meio das gestantes, uma suspeita de tuberculose, uma criança com conjuntivite e uma senhora com dores no corpo e na alma.
É como estar em uma biblioteca e ter que acessar uma prateleira em cada extremo da sala, uma atrás da outra.
Tenho saudade dos plantões em pronto-atendimento pediátrico, onde as doenças (infecto-contagiosas, na maioria) não chegam aos pares e sim aos bandos. É mais monótono, mas o cérebro cansa menos. Às vezes sinto que sou uma loja de departamento, direcionando os pacientes dentro da minha cabeça, um para cada setor.
Estamos decorando o posto para o Natal. E estamos arrecadando roupas, brinquedos e alimentos para distribuir para as famílias mais pobres na semana do Natal. Quem quer ajudar levanta a mão.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Palavras mal-cheirosas


           Na casa da Wó não se dizia nome feio. Só em alemão. Impronunciáveis. E se em algum almoço de domingo alguém se entusiasmava e soltava algum, no meio de uma discussão acalorada, a Wó logo dizia:
-Ué, ué, ué... Vamos parar com as palavras mal-cheirosas. Isso não se diz na mesa! Ué, gente!
O vô só dizia as iniciais, mesmo assim, em algum contexto, contando uma história:
- E então o fulano respondeu: “vai-te à ‘m’!”
Às vezes, ele também mencionava “as quatro letras”. Normalmente, seguia-se uma explicação sobre como aquelas tais quatro letras eram uma abreviatura de uma palavra mais comprida, a profissão da Madalena, que estava na Bíblia. Dizia baixinho, num cochicho:
- Prostituta...
Na casa do meu pai, palavrões eram bem tolerados. Não se dizia assim por dizer, mas dentro de um contexto. Não costumava ter o objetivo de ofender ninguém. Era num clima mais relaxado. Se escapava algum, tudo bem. Para o desespero da vó Mila:
- Maaas - dizia ela, segurando o queixo com a mão.
Normalmente era quando ela presenciava uma conversa ao telefone do meu pai com seu irmão:
- E aí, seu filho da puta, há quanto tempo? Vai-te à merda então, seu imbecil...
Mas era tudo brincadeira, ao menos era o que eu achava.
O pai também tinha umas musiquinhas legais, como aquela do Espalha Merda:
               
“Chamaram meu boi de espalha merda
                A turma lá de casa bronqueou
                Até minha mulher não gostou
                Espalha merda é o cu da mãe de quem chamou.

                “Quando o meu boi entrou no picadeiro
                A turma lá de trás gritou:
                - Espalha merda!
                Isso não se faz, aonde que se viu?
                Espalha merda é a puta que o pariu!”

Meio chula, mas legal. Era quase uma catarse, todos aqueles nomes sendo ditos alegre e confiantemente pelo adulto responsável da casa. Até hoje me lembro de rolar de rir ao ouvi-lo cantar o Espalha Merda... Ele cantava com uma fisionomia séria, como quem canta uma marcha militar ou um hino pátrio.
A quem não o conheceu, o meu pai, é preciso dizer que seu gosto musical era, na verdade, extremamente refinado, além de muito eclético. Acho que a definição é de que gostava de boa música, não importava o estilo. Adorava um bom samba, gostava de jazz, ouvia música erudita e marchas militares. Havia tocado clarinete, quando garoto em Santa Maria, na banda do colégio. E...  gostava dessas músicas do “chinaredo”.