quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Licença poética 2

O ano é 1918. 27 de julho. É inverno e faz um frio terrível . O fogão à lenha está ligado, mas um minuano gelado entra pelas frestas da madeira da casa. Uma menina está dormindo debaixo do seu cobertor de lã de ovelha. Quatro anos. No outro quarto, sua mãe começa a sentir as dores. Já estava passando da hora. Há alguns anos, tivera outra guriazinha, que morrera de difteria com poucas semanas. O que viria agora? Passam-se muitas horas (já é dia 28), a parteira ajudando, o marido nervoso, fumando um palheiro atrás do outro, aquela urgência de fazer força. E a dor. Muita dor. A criança parece empacada. Presa. A parteira examina, apalpa a barriga enorme. Está sentada. Tem que chamar o médico.
- Tenta não fazer força, ouviu. Vou tentar virar o nenê.
Empurra daqui e dali, enquanto a mãe urra de dor. Não parece ter efeito. Continua sentada. Está muito baixo, não dá mais tempo de virar. Vai ter que nascer assim.
Chega o médico. Faz um pouco de força, consegue enxergar as nádegas e as partes íntimas. Outra menina. Finalmente consegue passar, os bracinhos esticados ao lado da cabeça, um grito de dor da jovem parturiente. Choro estridente. A parteira seca, esfrega, limpa. Enrola em um cobertor e entrega para o médico. O bebê passa bem, está rosado, respira, mas não se acalma, deve ter dor. O médico observa, apalpa, examina. A criança parece ter quebrado os bracinhos durante o parto, por causa da posição sentada. Prescreve uma infusão para a dor. A mãe, uma linda jovem de origem italiana de 20 anos, bota no peito, sorrindo aquele sorriso exausto de quem acabou de dar à luz. A pequena se acalma, consegue mamar. Quando fica imóvel, a dor parece passar. O doutor orienta enfaixar os bracinhos. Quando deixa a casa, já na madrugada do dia 29 de julho, o chão, as árvores, a casa, a charrete, tudo está branco. Havia nevado toda a noite. Deixa o armazém, cenário da jornada épica. O dono está orgulhoso e olha para a porta do quarto onde sua filhinha mama tranquilamente. A irmãzinha levanta para espiar o bebê. O médico suspira. Sensação de dever cumprido. Mais uma vidinha começa. Tomara que seja longa, depois de tanto sofrimento de mãe e filha para nascer.

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