terça-feira, 11 de outubro de 2016

Gotinha de Esperança

Então no início da semana, alguma coisa realmente milagrosa aconteceu. Lembram do curumin da última postagem? Pois continua lá, cada vez mais gordinho, agora a sorrir mais do que a chorar. Tenta agarrar as coisas, olha fixo nos olhos de quem brinca e cuida dele. E a mãe notou. E o pai também. Do jeito deles. Disseram que querem levar o moleque pra casa. Com tubo de plástico no nariz, artificial e tudo. E que não vão arrancar quando chegar na tribo.
Estão com medo. Medo de não saberem cuidar da alimentação da criança, medo de que os outros não aceitem sua família. Talvez tenham medo até mesmo de Tupã. Mas eles viram o menino sair do seu estado de desnutrição profunda, sem conseguir nem mesmo sorrir direito. Eles viram a mágica que aconteceu no seu olhinho de curumim, que começou a ficar curioso. E acho que começaram a se apaixonar pelo próprio filho. E então, de repente, a opinião do cacique já não tinha tanta importância. Nem a do antropólogo e nem qualquer outra. Pra falar a verdade, nem a nossa opinião. O que ganhou importância foi o olhar do curumim.
Não se enganem, o acampamento continua miserável, as pessoas ignorantes, os outros filhos continuam negligenciados. Não é um milagre do tipo que canoniza santo. Esses são com fequência fraudulentos. O meu milagrezinho é pequeno. É discreto. E pode desandar a qualquer momento. Mas é real. O meu milagre se operou no nível interior dos pais do piá. Tomara que consiga transbordar para o exterior. Salve Tupã, que inspirou os pais a olhar para o menino. E vida longa ao curumim.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Quase universal

Resolvi ressuscitar o blog. Não que eu não tenha escrito nesses meses todos. Escrevi muito. Só não achei que fosse nada digno de ser compartilhado. Ainda não estou bem certa de que o próximo texto o será. Mas... Bolas vamos botar lenha na fogueira. 
Esse negócio de ficar doente faz a gente filosofar . Então lá vai. 
Desde que eu voltei a trabalhar, meu escudo antitragédia tem falhado. Ele era mais eficiente. Ando pensando demais em problemas cujas soluções estão (muito) além do meu alcance. O hospital onde eu trabalho, bom, às vezes acho que deveria trocar seu nome para Hospital Materno Infantil Nélson Rodrigues. Eis um desses casos que não saem da minha cabeça. Detalhes modificados para preservar quem quer que seja. Qualquer semelhança terá sido mera coincidência.
Dia desses chega na emergência um molequinho de dois anos, trazido por um agente do Estado e por sua genitora. A pessoa (no colo desta última) estava absolutamente imunda, com crostas de sujeira pelo corpo. Não tomava banho havia muito, se é que algum dia havia visto e sentido na pele a sensação de água e sabão. Pesava cerca de sete quilos, visivelmente desnutrida. Apresentava febre e dificuldade para respirar. Foi examinado, medicado, recebeu oxigênio, soro e outros cuidados e, assim que estável, um banho. Nesse meio tempo, enquanto providenciava-se a internação, o residente perguntou pela caderneta de vacinas. Foi informado por um dos acompanhantes que não dispunha de uma, visto que nunca fora vacinado. Perguntada sobre histórico e acompanhamento médico (a criança, além de desnutrida, não caminhava, nem sentava, sequer firmava a cabeça, muito menos falava), a mãe informou que nascera em casa e que nunca havia sido levada a um serviço de saúde. Alimentava o ser humano com 3 mamadeiras de leite integral por dia. E era isso. 
Equipes assistenciais de médicos e enfermeiros, além de todos os outros, fizeram o garoto engordar mais de um quilo em seis semanas. Fez ressonância magnética, exames de sangue, avaliação genética, neurológica, etc. Tudo o que existe para descobrir o que a pessoa tinha de errado. 
E, consequentemente, tratar de melhorar um pouquinho o peso do seu resgate kármico neste mundo  de matéria densa. A assistente social descobriu que o casal, nascido em outro país, tinha mais dois filhos, uma criança de 10 anos que não tinha conseguido ser alfabetizada ainda e outra de cinco que não caminhava e nem falava. Os filhos aparentemente haviam nascido em território brasileiro. Para mim, tudo era muito simples: chama a família e dá a real. Qual é o problema? Cuidem direito dessas crianças ou serão recolhidas para um abrigo. Pelo menos comida, assistência médica e banho os indivíduos receberão. O que esse casal precisa para cuidar dos filhos? Dinheiro? Emprego? Educação? Então que os tentáculos do enorme Estado brasileiro mostrem a que vieram. Existe um programa governamental para cada desgraça existente no país, regiamente remunerados com o dinheiro do pagador de impostos. Os funcionários, os burocratas, ao menos, estão lá. Com salas e gabinetes limpinhos, papel higiênico no banheiro e ar refrigerado para os dias de calor. Abrigo para crianças vulneráveis, bolsa-família, Minha Casa, Minha Vida, Educação para Jovens Adultos, benefício da previdência para inválidos, desvalidos e outros incapazes. FASC, CRAS, Coas rede, mini rede, conselho tutelar. Sigla é o que não falta. Um linguajar para os iniciados. 
Então na hora de dar alta pro piá, vem a piada. De mau gosto, muito mau gosto. 
A família não quer que o menino use sonda para alimentação. Também não vão vacinar e nem fazer os exames para o retorno ambulatorial. E tudo bem. Por quê? 

Porque são Caigangues. Indígenas aldeados. E isso, descobri recentemente, ao contrário do que sempre acreditei, é uma categoria diferente de pessoa. Não que algum grupo neonazista ou da chamada extrema direita defenda que sejam tratados como cidadãos de segunda classe. Não. O problema é que as pessoas que se entendem como defensoras dos fracos e oprimidos, aqueles que se julgam bastiões da boa-pessoagem, os que querem me convencer que defendem os índios e outras minorias menos favorecidas, essas pessoas acham que o curumim tem que voltar para a tribo. Sem sonda de alimentação, sem médico, sem vacina. (Há equipe de saúde no acampamento. O menino não foi levado porque os pais não o fizeram) Tipo, pra morrer. O antropólogo me explicou que esse grupo de pessoa entende que "deve deixar a natureza agir, seguir seu curso." Os outros, na tribo, não aceitariam a sonda, um "elemento artificial" introduzido no corpo da criança. Então aceitação social é mais importante do que a integridade física e, em suma, a vida. Só esqueceram de perguntar pro guri se ele também acha isso. 

Também me ocorreu do porque de ter levado a criança ao hospital quando ficou doente. Não era pra deixar a natureza agir? Deixasse na aldeia. Certamente não estaríamos tendo essa discussão agora. Ou será que alguma coisa no instinto de mãe falou mais alto do que esse negócio de cultura ancestral, ao ver que o filho iria morrer, sabendo que existem  recursos  para o caso dele. 

Veja bem, não se trata de uma discussão sobre eutanásia. Eutanásia é quando um doente é 
terminal e decidimos não prolongar a vida com intervenções que levem a sofrimento desnecessário. O moleque não é terminal. Nem vegetativo. Ele chora quando os pais se ausentam. Sorri quando brincam com ele. Interage. É uma criança com retardo mental. Ainda que fosse terminal, deixar um ser humano morrer de fome e desnutrição, fora a pneumonia aspirativa que certamente fará, está longe do conceito de morte tranquila e sem sofrimento. Eu não me sinto a vontade para dizer se ele é mais ou menos retardado e, por isso, merece ser deixado  para morrer ou viver. (Aliás, decidir se alguém vai viver ou morrer com base no QI foi algo empregado pelo regime nazista.) 
Do ponto de vista médico, ninguém tem dúvida. O menino precisa do tubo de alimentação. O risco de morrer antes de completar  cinco anos de vida sem o equipamento é próximo de 100%.

O que me deixou estupefata é que se ele fosse simplesmente brasileirinho não haveria grande margem para discussão. Precisa da sonda, vai pra casa com ela. Treina a família, organiza a vida deles. Se não cuidar, entrega a alguém ou alguma instituição que cuide. O crime dele é ser  indígena aldeado. Tudo o que deveria existir para garantir proteção extra está funcionando contra. 
Comecei a cogitar que eu tivesse imaginado todas as declarações de direitos humanos que já li. Então fui pesquisar. Para minha surpresa, existe uma porção de leis nacionais e internacionais que dizem o óbvio. Que o moleque tem direito à vida. Que o direito à preservação da cultura ancestral de uma tribo nao pode ser mais importante do que a integridade física do curumim. Existe, inclusive, um artigo em uma convenção dos direitos da criança, da qual o Brasil é signatário, que diz que é dever do país, através do seu governo, garantir a descontinuidade de práticas tradicionais que impliquem crueldade. (Tipo arrancar o tubo de alimentacão de uma criança indefesa porque tem que "deixar a natureza agir") 
Também tem leis sobre indígenas e povos nativos que diz que os mesmos têm direito a acesso aos melhores recursos em saúde disponíveis. E outras leis sobre pessoas portadoras de necessidades especiais que diz que precisa oferecer tudo o que há para melhorar  a experiência de vida da pessoa. 

O problema dessas declarações universais não é o conteúdo delas. Qualquer um que lê assina embaixo rapidinho. O problema é que elas tratam de pessoas no coletivo. E as pessoa só podem ser defendidas, na prática, individualmente. Quem faz valer todas as declarações e leis que dizem garantir o direito do curumim viver? Perante a tribo dele, quem defende  o menino, se a tribo é considerada autônoma em relação ao país? Pelas leis brasileiras, a criança tem direito à vida. E existem órgãos que fazem valer esse direito, mesmo quando os pais não colaboram. A criança é um ser humano, não é propriedade dos pais ou cuidadores. O indiozinho é propriedade da tribo? A tribo não é signatária da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Então quem implementa a declaração em favor dos seres humanos que vive na tribo? 

Até agora o indiozinho segue internado. Apesar das tentativas dos ditos defensores dos nativos de mandá-lo pro acampamento pra morrer, a decisão caberá ao juiz. Rezo todos os dias para que ele seja inspirado por bons espíritos para oferecer a essa criança o direito de continuar viva.

Já pensou se o Stephen Hawking fosse índio?