sexta-feira, 30 de março de 2012

Tiro Liro Liro

 Hoje faz 6 meses que a Wó se foi. Estou tristonha e, por qualquer razão, deparei-me com versões da musiquinha portuguesa Tiro Liro Liro. A Wó cantava, às vezes. Completamente non-sense e anacrônico, mas resolvi compartilhar:

Lá em cima está o tiro-liro-liro
Cá embaixo está o tiro-liro-ló
Juntaram-se os dois na esquina
Tocar a concertina, dançar do solidó.

Comadre, ai minha comadre!
Eu gosto da sua pequena!
É bonita, apresenta-se bem
Parece que tem a face morena!

Comadre, ai minha comadre!
Eu gosto da sua afilhada!
É bonita, apresenta-se bem
Parece que tem a face rosada!

Isto era o original, que Amália Rodrigues cantava. As outras versões são as que eu me lembro de ouvir quando criança dentro da casa da Wó. Na verdade, só as duas primeiras estrofes, mas achei as outras engraçadinhas:

Lá em cima  o General Craveiro.
Cá embaixo o Oliveira Salazaire
Juntaram-se os dois na varanda
A fazeire propaganda pra guerra se acabaire

Portugal não entrou na guerra
Mas também não acovardou-se
Botaram um pano em cima
Escreveram depressa Portugal mudou-se

Vieram os paraquedistas
Sobre Portugal baixaire
Ligamos os ventiladores
E botamos os gajos de novo pros aires

Portugal entrou na guerra
Com seu dois aviões de pau
As balas de batatinha
E as trincheiras de bacalhau.

Portugal tem seus aviões
Camuflados pra chuchu
Pintaram os bichos de preto
E escreveram isto é um urubu

Portugal entrou na guerra
Com u'a invenção traquina
Espingarda de cano curvo
Pra quando o gajo virar a esquina



quinta-feira, 29 de março de 2012

O Saco

Minha voz acabou quando faltavam quinze minutos para as cinco horas. Após ter passado a madrugada entre uma filha e outra, trabalhei minhas oito longas horas regulamentares e vim para casa. No apartamento, estava acontecendo o Ronaldo. O Ronaldo foi a pessoa que consegui desencavar para consertar um vazamento do cano da cozinha. Vazamento esse que já atinge dois andares para baixo. Ótimo, o Ronaldo. O problema foi todo o resto. Há um buraco na parede da minha sala, uma janelinha tosca que comunica a cozinha com a sala, como se a porta não fosse suficiente. O piano está tapado com um pano e fora do lugar, assim como o aparador e a mesa da sala. O tapete foi removido. E o cano de cobre era tão velho e furado que não tinha conserto. O registro da água quente (o problema era na água quente) está fechado. O tal registro é relativamente novo, foi trocado por nós quando reformamos antes de nos mudarmos. Mas o registro não funça. A parede aberta, água pingando para a sala e sem água quente nos chuveiros. Aí, resolvemos instalar um chuveiro elétrico. O Ronaldo instalou o chuveiro, devidamente comprado no Zaffari minutos antes, mas a caixa dos disjuntores é velha e a chave está estragada. Além disso, quando instalamos os aparelhos de ar condicionado, o moço fez uma gambiarra e ninguém mais sabe qual peça da casa pertence a qual chave. Resumo, o banho gela após 30 segundos, pois cai a chave. E nos 30 segundos em que esquenta, tem um pingo gelado que cai bem no meio da cabeça. E não está muito calor em Porto Alegre. Uns 13 graus. Agora, as crianças dormem, a casa está de pernas para o ar e eu estou exausta. Amanhã, chegarei em casa e a parede estará mais aberta ainda, visto que o Ronaldo precisa perseguir o final do cano furado e trocá-lo, o piano deslocado, etc, etc. Mas ao menos (assim espero), terei banho a gás e o gesso do vizinho de baixo não terá caído na cabeça de ninguém.
Desculpem o desabafo. Como diria a Wó, eu precisava despejar o saco.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Rituais

Desconfio que os rituais existam para tentar organizar o nosso mundo caótico e incompreensível. Se eu disser um mantra e der sete pulinhos para a direita, então o Deus do Computador do Posto vai marcar a consulta da minha paciente para aquela especialidade de que ela tanto precisa. Diz a funcionária responsável que existe uma pessoa de carne e osso (um semi-deus, assim como Hércules?) que regula as consultas especializadas e realiza o agendamento. Mas eu acho que não. Acredito piamente que há uma divindade que habita o mundo virtual e que, aleatoriamente, distribui as consultas a seu gosto. E que ri de nossos esforços e prega peças a nós, pequenos fantoches que tentam interagir com eles. É até possível que cada especialidade tenha seu deus, assim como os gregos e romanos tinham a deusa da guerra, da fertilidade, o deus do vinho, etc. Não sei como são os nomes dos diversos deuses, mas alguns são claramente mais fáceis de agradar do que outros. Por exemplo, a deusa do Pré-Natal de Alto Risco é mais dócil do que o deus da Neurologia Adulto. O deus da Psiquiatria é ardiloso: precisa ser mimado e agradado para agendar a consulta por um ritual denominado "matriciamento". O deus da Traumato-Ortopedia é impossível de ser acessado. Ou então é porque a Traumatologia é um ente ateu. O fato é que até hoje, desde que o sistema informatizado de agendamento de consultas especializadas foi implantado, nenhuma consulta para traumatologista foi marcada. Estou a ponto de tentar sacrifícios humanos para agradar o deus da Traumato-Ortopedia.
***
Falando em rituais, crianças pequenas frequentemente têm a necessidade de rituais. Acho que tudo é bastante complexo para uma criancinha analfabeta e que ainda não domina os códigos dos adultos. Luísa tem seu ritual de dormir. Ele deve ser feito exatamente na ordem correta para que a noite transcorra calmamente. Ela até tolera alterações, desde que exaustivamente explicadas e planejadas. Normalmente, porém, nós chegamos da creche e brincamos um pouco. Depois é hora do banho, com alguns protestos, e de tomar café com o papai e com a mamãe. Ela, durante o café, precisa comer um pedacinho de pão com cada uma das opções oferecidas na mesa: manteiga, requeijão, patê, schmier de morango e Mumu (quer dizer "doce de leite" em portoalegrês). Se falta algum, ela logo abre o bico:
- Eu ainda não comi com requeijão. 
E não tente convencê-la de que já comeu com manteiga e patê, que é suficiente. Tampouco adianta argumentar que já comeu o pão com doce em cima. Ela não se importa de voltar ao salgado. O importante é comer um de cada.
Depois do café, escova os dentes, faz xixi, dá boa noite e vai para a cama. Aí começa o ritual da cama. Lemos uma história do livro, depois eu conto uma história sem livro, da minha cabeça, preferencialmente com alguma música, rezamos o Santo Anjo e ela, finalmente, vai dormir. E também temos que acender as estrelinhas, que são luzinhas em forma de céu estrelado projetadas no teto do quarto. Às vezes me pergunto se não estou criando uma criança muito cheia de nove horas. Mas então me lembro que ela só tem dois anos. E que o mundo é realmente complicado. E que tem muito pouca coisa que ela controla. Se controlar a disposição dos bonecos na sua própria cama ou a ordem das histórias de dormir a deixa segura, pois então que seja.
Quisera eu que o ritual funcionasse tão bem para os deuses do computador do posto.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Efeito Ana Karenina

"Todas as famílias felizes se parecem, as famílias infelizes são infelizes cada qual ao seu modo." Assim Tolstoi começa Ana Karenina. Durante esta semana tive a oportunidade de comprovar que a vida imita a arte. Tolstoi tinha razão. Atendi um número infindável de mazelas humanas e familiares, para todos os gostos, idades e qualidades. Houve poucas consultas "normais".
- Dor na garganta, doutora, desde ontem.
- Gostaria de fazer exames, um "check-up"
- Trouxe o menino porque acho que ele está muito magrinho.
- Acho que é vermes, doutora. Está com manchas na pele, só quer comer doces e range muito os dentes - na cultura popular local, sinais patognomônicos de infestação por vermes.
Não. Nesta semana, nada era o que parecia ser. Todos eram problemas graves e ainda uma coisa macabra escondida. Não bastava ter um filho autista. Precisava fazer um diagnóstico de HIV na mesma mãe solteira. Não era suficiente um drama por família. Nesta semana que passou, vários dramas foram necessários para cada uma das famílias atendidas. As consultas todas atrasaram, porque nada era passível de resolução nos 20 minutos regulamentares. Sempre alguém que usava crack até a semana passada, tinha muitos filhos e sofria agressões do ex-companheiro. Crianças cuja mãe abandonou, o pai não dá bola e a vizinha meio que cuida. A mãe solteira (sempre), alcoolista, ela própria abandonada pela mãe, criada pelo pai e avós, todos mortos há anos. E o companheiro usuário de crack em volta dela e do filho de 11 meses.
Aquelas perguntas que temos que fazer, meio automáticas, me arrependi de todas.
- Alguma vez já escutaste vozes, Joaquina (33 anos)?
- Sim, doutora, quando tinha 16 anos e usava cocaína. E logo depois que o meu filho (de 1 ano) nasceu. De umas semanas para cá, voltei a escutar.
Em outro caso:
-  O companheiro já foi violento contigo?
- Sim, por muitos anos aguentei. A última vez foi quando estava grávida (há cerca de 3 anos). Mas agora está preso em Charqueadas. Só tenho medo, porque parece que ele sai no mês que vem. Aí vai começar tudo de novo.
Eu sempre suspeitei que Nélson Rodrigues era uma alma ingênua e pura, pois não era médico de família e nem pediatra. 
E os Titãs estavam errados: misérias são diferentes.

terça-feira, 20 de março de 2012

Park Avenue

Tenho o hábito de ir trabalhar de lotação. Tem seus incômodos, mas nada se compara ao extremo incômodo de enfrentar o trânsito da manhã e, principalmente, de estacionar o carro próximo ao meu trabalho. O lotação é ótimo. Para a uma quadra da minha casa e me deixa a 50 metros do trabalho. Vou sentada, naquele estado de consciência vago entre o sono e a vigília, refestelada no ar-condicionado quase gelado demais. Além disso, posso olhar a paisagem pela janela.
Não que haja grandes paisagens no trajeto. Hoje, na Bento Gonçalves (para quem não conhece Porto Alegre, uma avenida grande, movimentada e fedorenta, com um enorme e barulhento corredor de ônibus que corta tudo em dois), fiquei a reparar algumas casinhas que sobreviveram à passagem do tempo. Pequenos sobrados (lembram as "townhouses", uma colada na outra, com escadas na frente). Alguns até conservados, pintadinhos. Seriam bonitos se não tivessem aquela aparência listrada que as grades deixam por toda a cidade. São gaiolinhas com sobrados acoplados. Triste.
Na volta, fiquei a reparar nos prédios da João Pessoa, outra avenida grande, movimentada e fedorenta e com corredor de ônibus. A diferença é que a João Pessoa, com todo o barulho e fedor do diesel de um zilhão de ppm que usam nos nossos ônibus, fica na margem de um lindo parque. Com árvores grandes e frondosas, um lago e muitas pracinhas infantis, é perfeito para passear e um colírio para olhar, no meio do caos que o cerca.
Em cidades grandes, civilizadas e cosmopolitas, como Londres e Nova York, o metro quadrado em volta dos grandes parques é, possivelmente, o mais caro da cidade. Em Porto Alegre, não. O parque mais tradicional da cidade é cercado de eixos viários barulhentos e poluídos (João Pessoa e Oswaldo Aranha). E desvalorizados. Grande parte dos prédios são de imóveis de aluguel para estudantes. Prédios velhos e mal cuidados, com pixações e a sujeira do nosso diesel-um-zilhão-de-ppm entranhada em todos os lados. Cinza. Meio preto. Um contraste com o colírio do parque.
É que cidades grandes, civilizadas e cosmopolitas, como Londres e Nova York, dispõem de um sistema de transporte público que inclui quilômetros de metrô. O que dispensa o uso de corredores de ônibus alimentados por diesel-um-zilhão-de-ppm.
A gente chega lá. Depois da copa, se ela vier.

domingo, 18 de março de 2012

Einstein teve tempo para brincar

Este é o título de um livro ótimo que estou a ler. Fala sobre a inutilidade de "estimular" precocemente as nossas crianças para ensinar-lhes tudo mais cedo. E também fala sobre o óbvio: crianças  crescem e desenvolvem-se melhor fazendo aquilo que fazem melhor desde que o mundo é mundo: brincando. Não há programa de televisão, fichas de aprendizado e métodos de alfabetização precoce que propiciem oportunidades de desenvolvimento melhores do que simplesmente deixar os pequenos a brincar livremente. Não que não aprendam o que quer que lhes ensinemos. Mas aprederão mais e melhor se tiverem tempo para ter tempo. Podemos até propor-lhes brincadeiras estruturadas e, dependendo da idade, com regras. Mas o livro fala sobre a inutilidade de ensinar crianças de 18 meses a contar, antes que consigam ter a percepção real das quantidades e do que significam símbolos. Tudo a seu tempo. Eles adquirem os requisitos necessários para aprender a contar enquanto brincam alegremente com blocos de montar ou panelinhas de plástico. Sem ninguém em volta para ensinar.
Enquanto escrevo, minhas filhas estão entretidas a brincar, sozinhas, neste instante. Joana explora potes de plástico coloridos e Luísa tenta montar coisas com seu Lego. Vez por outra tenho que aproximar novamente os brinquedos de Joana, pois ela põe-se a atirá-los longe e ainda não engatinha (ela se atira para frente e tenta "abocanhar" o chão para impulsionar-se para frente, sem muito sucesso). Sem raiva. Apenas observa, enquanto parece tomar "notas" mentais sobre o resultado da experiência. Depois, pega outro objeto e novamente atira longe, contemplando o resultado com um sorriso de Monalisa entre os lábios. Agora, observo-a enquanto ela desiste um pouco dos potes e cubos de plástico e diverte-se explorando o pé e a própria roupa.
Dá trabalho, mas é muito divertido. Não sei se serão gênios. Mas ao menos terão tido uma infância divertida.

quinta-feira, 15 de março de 2012

A Bruxa Malvada do Leste

Aquela, chamada Rotina. Hoje estava num dia meio sem paciência com ela. Atendi e trabalhei a ritmo acelerado, sem muito tempo para respirar, ir ao banheiro ou tirar leite. Lá pelas tantas da tarde, as mamas ingurgitadas e doloridas (a Bruxa Malvada não leva em consideração as mães lactantes), forcei uma pausa para não passar vexame de sair com a blusa molhada por aí.
Ocorre que hoje atendi o que chamamos em Saúde da Família de consulta do binômio. O binômio refere-se à dupla mãe-bebê na sua primeira consulta pós parto. Como médico ou enfermeiro de família atende toda a população, fazemos a primeira consulta da dupla em um mesmo momento, para facilitar a vida da família. E dificultar a nossa, lógico. Nada contra atender a família junta, isso até me dá prazer e alegria. O que complica é a quantidade insana de papel que temos que preencher. Temos que:
1. Encerrar o pré-natal da mãe no livro de vigilância do pré-natal do posto de saúde;
2. Preencher uma ficha de notificação de puerpério da secretaria municipal de saúde;
3. Preencher o prontuário da mãe;
4. Abrir o prontuário do bebê;
5. Preencher a ficha do Programa Pra Nenê, com informações detalhadas sobre a criança e sua situação social;
6. Preencher o Cartão da Criança com informações antropométricas do bebê;
7. Preencher o prontuário do bebê;
8. Registrar o nome e os demais dados do bebê no caderno de vigilância do Prá Nenê do posto de saúde.
Além, evidentemente, das duas consultas propriamente ditas, com as respectivas anamenses e exames físicos da dupla. Isto envolve o exame ginecológico da puérpera, além do restante do exame clínico, e o exame físico completo do recém-nascido. Nesta primeira consulta, também preciso analisar a pega do bebê ao seio materno e tentar tirar todas as (muitas) dúvidas que surgem nos primeiros dias de vida do bebê. Eu acho completamente impossível realizar todas estas tarefas com qualidade aceitável em menos de uma hora. Às vezes, somente a parte clínica me toma uma hora inteira, dependendo do grau de insegurança ou dos potenciais problemas que possa ter a criança e a mãe. Também é necessário orientar a contracepção e a alimentação da nutriz, além de verificar se está tomando suplementação de ferro.
Hoje, por exemplo, atendi duas duplas trabalhosas. Uma mãe adolescente, 17 anos, interessada, cuidadosa e muito insegura. Necessitava de muita orientação e reforço positivo, com os seios machucados e fissurados pela pega inadequada do nenê. Não fosse a colaboração da residente de nutrição, que se dispôs a orientá-la, teria demorado bem mais de uma hora.
O segundo binômio era de uma mãe de 18 anos, segundo filho, ex-companheiro e pai da criança preso no Central. Moram na casa a mãe e seus dois filhos, quatro irmãos dela, entre 7 e 15 anos, e a avó. Oito pessoas sustentadas pelo salário-mínimo da aposentadoria da avó-matriarca, encostada do INSS por doença mental, e mais R$70 do Bolsa-Família. Isto significa que cada membro da família vive com cerca de US$1,60 por dia. Não é miséria, mas é quase. Apesar dos esforços da enfermeira do posto de tentar contato telefônico com esta mãe, ela compareceu no posto apenas agora, e seu pré-natal teve somente uma consulta. Como não temos agentes comunitários, é difícil fazer a busca ativa dessas famílias em situação de vulnerabilidade apenas com a equipe técnica do posto. Outra hora e pouco de consulta. Os papéis acumulavam-se sobre a minha mesa. Acho que a Bruxa Malvada do Oeste chama-se Papelada. Na minha mesa de trabalho, ela tem vida própria e vai dominando cada canto que encontra, até que eu consiga uma pausa dos pacientes para colocá-la em seu devido lugar.
Terminei os binômios mentalmente esgotada, ainda tendo outros pacientes, agendados ou não, para ver. Foi o dia em que as bruxas estava realmente soltas.
***
Tudo valeu a pena para chegar em casa e, depois de me recompor, dar banho na Joana, que tentava "agarrar" a água que caía do chuveirinho.

domingo, 11 de março de 2012

Palácio de Verão

Chegamos há pouco do palácio de verão, em Osório. Escrevo já acomodada na cama, através desta geringonça fascinante chamada smartphone. É meio desengonçado de escrever nesse tecladinho, mas vou indo. Como o cansaço e o adiantado da hora impedem uma postagem longa e inspirada, apenas escrevo pela força do hábito. Fim de semana adorável, passado à beira da piscina com as crianças e o marido, quando não estava a estreitar meus laços com Morfeu. Ontem, entre uma batatinha frita e um gole de água mineral (estou amamentando, a cervejinha vai ter que esperar), pensei em voz alta:
- Ah, que vida dura, a minha! - enquanto observava Luísa a brincar na água.
Agora, quase segunda-feira, bato meus calcanhares três vezes e digo:
- Não há lugar como a nossa casa. - enquanto me preparo para lidar com a bruxa malvada do leste, que aqui em casa chama-se Rotina.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Aviação

Tema recorrente neste blog, a saudade dos meus avós apertou no dia de ontem. Atendi um paciente que me lembrou o vô. O vô das minhas memórias de infância, seus 70 e poucos anos. Que dirigia seu grande Opala verde, apesar do medo de toda a família. Que ia ao "City" (referia-se ao Citybank) a pé e voltava de ônibus, sempre com a sua boina basca.
Pois o tal senhor, 75 anos, integrara o Batalhão de Suez. Contou-me, orgulhoso, dos lugares que vira na juventude. Disse que alistara-se para poder viajar. E foi a única vez em que viajou para o exterior (ele me disse, entre risos, que a fronteira Jaguarão/Rio Branco "não conta")
Despertou as lembranças da viagem da Europa do vô, que ele contava para qualquer visita que mencionasse uma viagem, até para São Leopoldo. Seu José contou-me sobre o Batalhão de Suez, atrasando todas as demais consultas da manhã. Mas escutei com todo o carinho, como se fosse o vô.
À noite, enquanto fazia as compras da casa, deparei-me com uma lata de manteiga Aviação. Quase a me chamar. Imediatamente, senti o cheiro do café forte que a Wó passava para a janta, que o vô misturava com leite e adoçava com uma colherzinha de mel. Senti o gosto do miolinho do pão branco que ele nos dava, pois tinha "muito triglicerídio". Comia a casca com käs schmier, que ele misturava com a nata da sua xícara de leite. (Confesso que achava meio nojento aquilo). Vi sua imagem sentado à mesa da copa, recostado na cadeira, a pancinha cheia de farelo de pão, que ele espanava com a mão. E lembrei dele molhando a mão com a água da jarra da geladeira no fim da refeição. E depois, pegava um biscoito recheado de chocolate, que era quadrado. Ele abria o pacote com uma faca, formando uma tampinha com o primeiro biscoito do pacote dentro dela. Claro que sempre nos dava aquele primeiro biscoito que, por qualquer razão, era melhor que todos os outros do pacote.
Tinha manteiga em casa, não estava na lista de compras. E havia uma latinha pequena da manteiga. Mas eu precisava da lata grande, a mesma que tinha no café da noite da casa dos meus avós. Custou uma fortuna.
Cheguei em casa e abri minha lata de manteiga Aviação. Peguei um pãozinho novo, fresquinho, e saboreei em sua homenagem. Teve gosto de saudade. Mas foi uma delícia. Valeu cada centavo.

terça-feira, 6 de março de 2012

Morfeu

Dormir, ultimamente, tornou-se uma obsessão. Não que Joana tenha alguma vez dormido propriamente bem. Mas é que agora, enquanto estava doente, ficou ainda pior (lembro-me do meu pai, que adorava dizer "nada está tão ruim que não possa ficar ainda pior"). Meus bebês nunca foram de dormir a noite toda. Luísa demorou uns 18 meses para isso. E a Joana ainda tem 7 meses. Devo fazer alguma coisa errada, ou então é da natureza delas demorar a dormir. Recuso-me, no entanto, a usar esses métodos de "deixar chorar". Uma vez, no meio do desespero da privação de sono de quando a Luísa era bebê, cheguei a tentar. Durou 45 minutos. Até que estávamos as duas aos prantos. Abracei meu bebezinho bem forte e prometi que não iria mais seguir teorias "miraculosas" que envolvem sessões repetidas de choro. Sei que para algumas mães pode ter funcionado. Mas para mim foi tortura. E acredito que para ela também tenha sido.
Invejo essas mães de bebês pequeninhos, de 2 ou 3 meses, que contam que a criança "dorme a noite inteira". É bem verdade que, ultimamente, por curiosidade científica, comecei a explorar o tema nas consultas de puericultura.
- Dorme a noite inteira, é? Como é isso, tu botas na cama às 8 e ele vai até o outro dia de manhã?
Invariavelmente a resposta é não. Claro, existem anjos que realmente dormem a noite inteira. Mas a grande maioria dos nenês de menos de 6 meses não dormem tanto. A mãe responde:
- É, doutora, só acorda pra mamar.
- Ah, acorda pra mamar. E como é isso?
- Ele acorda umas 3 ou 4 vezes à noite para mamar.
Buenas, isso não é dormir a noite inteira. Isso é acordar 3 ou 4 vezes ao longo da noite. Fico feliz pelas mães, satisfeitas com o sono dos seus pequeninos. Mas eu tenho muita saudade de quando eu ia dormir à noite e acordava no outro dia. E podia haver um alerta de bomba H no meu ouvido e eu não acordaria.
Desde que as meninas nasceram o meu sono nunca mais foi o mesmo. Mesmo quando elas dormem. Sempre espero ser acordada por um choro, um chamado, um resmungo.
No outro dia, a Joana dormiu umas 3 horas seguidas. Nos últimos meses isso tem sido muito raro. Quando dei por mim, estava a observá-la, quase assustada, para ver se respirava. Achei naquele momento que era a mãe mais neurótica do mundo. Mas não pude evitar.
Sei que ela vai aprender a dormir um dia. Pode demorar um mês ou mais um ano. Mas cedo ou tarde ela dormirá "a noite inteira". Enquanto isso, tiro cochilos sempre que posso, inclusive no meu horário de almoço, recostada em algum lugar que eu achar oportuno e discreto. E às vezes, chego achar o Ferber natural.

domingo, 4 de março de 2012

Febre

Demorei para escrever porque tive que cuidar da minha Joaninha, que está febril. Pobre anjo, até sorri no meio da febre. Seus olhos imensos e normalmente faiscantes estavam pequeninos e parados. Ainda assim, recebeu elogios da equipe que a atendeu hoje na emergência pediátrica. Fez exames, mas não sabemos ainda o que há de errado. E a febre continua.
Apesar disso, brincava alegremente na sua cadeira de balanço quando chegamos do hospital. Fiquei a observar como ela explora cada objeto. Primeiro ela pega o brinquedo, examina-o por todos os ângulos. A seguir, explora com as mãos, sacode, verifica se faz algum som. Por fim, leva-o à boca para ver que gosto tem. E em seguida atira longe. O curioso é que agora ela mudou o jeito de atirar longe. Antes, limitava-se a soltar para ver o que acontecia. Agora, ela leva o brinquedo para trás dos ombros e joga-o com força. Hoje, com toda a febre, ela decidiu tentar pegar o objeto do chão. A cadeirinha de balanço não é muito alta. Ela fica presa por um cinto de segurança e, até há alguns dias, contentava-se em apoiar a cabeça, meio deitada, num ângulo de 45 graus, e balançar-se agitando as perninhas. Agora, quer ficar sentada. Atira-se para frente e, não fosse o cinto de segurança, teria "capotado". Mesmo com toda a febre, ficou cerca de meia hora a fazer "experiências científicas". A fisionomia concentrada. Não ria. Aquilo era coisa séria. Pegou o cavalo-marinho amarelo com argolas e explorou-o com as mãos e com a boca. Em seguida, deixou-o cair no chão. Então, atirou-se para frente e juntou o brinquedo. Sozinha. Precisou de várias tentativas até conseguir. Mas não desistiu. Logo após tê-lo juntado, jogou-o novamente no chão, só que com mais força. E voltou a repetir o "experimento" mais três ou quatro vezes. Depois, fez a mesma coisa com seu pato de pelúcia. Uma pequena cientista, minha Joaninha.
Neste ponto, a febre começou a subir mais e acho que ficou desconfortável, pois ela começou a chomingar. Peguei minha futura Marie Curie no colo e senti seu corpinho quente contra o meu peito.
Agora a febre baixou, após mais uma dose de antitérmico. Ela dorme tranquilamente. Vou fazer o mesmo, pois Joana febril dorme ainda pior do que quando está bem. A madrugada será longa. Espero que a doença seja curta.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Livro

Hoje, Luísa comprou seu primeiro livro. Não me entendam mal, ela já tem muitos livrinhos infantis, que ganhou de várias pessoas. Mas hoje, ela foi à livraria com o próprio dinheirinho e comprou um livro que ela escolheu. Ontem, a vovó lhe deu R$5,00. O vô, hoje de manhã, entusiasmou-se e completou com mais R$10,00. Pronto, Luísa estava capitalizada quando eu cheguei em casa. É claro que ela não tem a menor noção do que significa o dinheiro. Ela mal sabe contar. Mas ela sabe que a mamãe e o papai trabalham para ganhar "pilas". E que os "pilas" servem para comprar coisas. Mas ela raramente vê o dinheiro sendo usado concretamente. Nessa era moderna, compra-se qualquer coisa com cartão. O cartão é um conceito muito abstrato para ela.
Mas hoje, a Luísa ganhara "pilas". O primeiro dinheirinho dela. Perguntei o que ela gostaria de comprar com o dinheiro:
- Um livrinho do Mickey. E uma figulinha do Puff. E uma figulinha das Princesas.
Achei que R$15,00 na banca de revistas era muito dinheiro. Principalmente, porque as figurinhas das Princesas e do Puff estão esgotadas. Decidi, assim, levá-la à livraria.
Para a minha felicidade, há uma ótima livraria de bairro a uns 50 metros da minha casa. E tem livros infantis. E um dono gente boa. Assim, levei Luísa na livraria, apresentei-a ao setor infantil e expliquei o caso ao dono da loja. Enquanto, sentadas no chão, escolhíamos o livro a ser comprado, notei que ele olhava fascinado aquele projeto de pessoa a olhar todos os livros. Queria todos, é lógico, mas eu expliquei que tinha que ser um livro que "coubesse" no dinheiro dela. Dei a ela algumas opções, para facilitar o processo. Escolhido o livro, ela levantou-se e foi, resoluta, ao balcão do caixa. Entregou a ele o livro. E o dinheiro, claro. Ele agradeceu, recebeu o dinheiro e deu-lhe um brinde: um marcador de livros. O moço botou o livro num saco de papel "para não sujar" e entregou-lhe a compra. E ela saiu feliz com seu livro de peixes dentro de um saco de papel. E com o seu brinde. Até deu "tchau" para o dono espontaneamente. Chegou no edifício, onde vários vizinhos conversavam, e disse:
- Eu comprei um livro! - enquanto mostrava, orgulhosa, o pacote.
Para mim, foi muito divertido ajudar minha filhinha a comprar seu primeiro livro. Mas eu tenho certeza que o dono da livraria se divertiu mais que nós.
Esperamos (o dono e eu) que seja o primeiro de muitos livros a serem comprados por ela. Por motivos diferentes, mas o final será o mesmo: mais uma "rata de livraria" na família.