segunda-feira, 26 de março de 2012

Rituais

Desconfio que os rituais existam para tentar organizar o nosso mundo caótico e incompreensível. Se eu disser um mantra e der sete pulinhos para a direita, então o Deus do Computador do Posto vai marcar a consulta da minha paciente para aquela especialidade de que ela tanto precisa. Diz a funcionária responsável que existe uma pessoa de carne e osso (um semi-deus, assim como Hércules?) que regula as consultas especializadas e realiza o agendamento. Mas eu acho que não. Acredito piamente que há uma divindade que habita o mundo virtual e que, aleatoriamente, distribui as consultas a seu gosto. E que ri de nossos esforços e prega peças a nós, pequenos fantoches que tentam interagir com eles. É até possível que cada especialidade tenha seu deus, assim como os gregos e romanos tinham a deusa da guerra, da fertilidade, o deus do vinho, etc. Não sei como são os nomes dos diversos deuses, mas alguns são claramente mais fáceis de agradar do que outros. Por exemplo, a deusa do Pré-Natal de Alto Risco é mais dócil do que o deus da Neurologia Adulto. O deus da Psiquiatria é ardiloso: precisa ser mimado e agradado para agendar a consulta por um ritual denominado "matriciamento". O deus da Traumato-Ortopedia é impossível de ser acessado. Ou então é porque a Traumatologia é um ente ateu. O fato é que até hoje, desde que o sistema informatizado de agendamento de consultas especializadas foi implantado, nenhuma consulta para traumatologista foi marcada. Estou a ponto de tentar sacrifícios humanos para agradar o deus da Traumato-Ortopedia.
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Falando em rituais, crianças pequenas frequentemente têm a necessidade de rituais. Acho que tudo é bastante complexo para uma criancinha analfabeta e que ainda não domina os códigos dos adultos. Luísa tem seu ritual de dormir. Ele deve ser feito exatamente na ordem correta para que a noite transcorra calmamente. Ela até tolera alterações, desde que exaustivamente explicadas e planejadas. Normalmente, porém, nós chegamos da creche e brincamos um pouco. Depois é hora do banho, com alguns protestos, e de tomar café com o papai e com a mamãe. Ela, durante o café, precisa comer um pedacinho de pão com cada uma das opções oferecidas na mesa: manteiga, requeijão, patê, schmier de morango e Mumu (quer dizer "doce de leite" em portoalegrês). Se falta algum, ela logo abre o bico:
- Eu ainda não comi com requeijão. 
E não tente convencê-la de que já comeu com manteiga e patê, que é suficiente. Tampouco adianta argumentar que já comeu o pão com doce em cima. Ela não se importa de voltar ao salgado. O importante é comer um de cada.
Depois do café, escova os dentes, faz xixi, dá boa noite e vai para a cama. Aí começa o ritual da cama. Lemos uma história do livro, depois eu conto uma história sem livro, da minha cabeça, preferencialmente com alguma música, rezamos o Santo Anjo e ela, finalmente, vai dormir. E também temos que acender as estrelinhas, que são luzinhas em forma de céu estrelado projetadas no teto do quarto. Às vezes me pergunto se não estou criando uma criança muito cheia de nove horas. Mas então me lembro que ela só tem dois anos. E que o mundo é realmente complicado. E que tem muito pouca coisa que ela controla. Se controlar a disposição dos bonecos na sua própria cama ou a ordem das histórias de dormir a deixa segura, pois então que seja.
Quisera eu que o ritual funcionasse tão bem para os deuses do computador do posto.

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