sexta-feira, 23 de março de 2012

Efeito Ana Karenina

"Todas as famílias felizes se parecem, as famílias infelizes são infelizes cada qual ao seu modo." Assim Tolstoi começa Ana Karenina. Durante esta semana tive a oportunidade de comprovar que a vida imita a arte. Tolstoi tinha razão. Atendi um número infindável de mazelas humanas e familiares, para todos os gostos, idades e qualidades. Houve poucas consultas "normais".
- Dor na garganta, doutora, desde ontem.
- Gostaria de fazer exames, um "check-up"
- Trouxe o menino porque acho que ele está muito magrinho.
- Acho que é vermes, doutora. Está com manchas na pele, só quer comer doces e range muito os dentes - na cultura popular local, sinais patognomônicos de infestação por vermes.
Não. Nesta semana, nada era o que parecia ser. Todos eram problemas graves e ainda uma coisa macabra escondida. Não bastava ter um filho autista. Precisava fazer um diagnóstico de HIV na mesma mãe solteira. Não era suficiente um drama por família. Nesta semana que passou, vários dramas foram necessários para cada uma das famílias atendidas. As consultas todas atrasaram, porque nada era passível de resolução nos 20 minutos regulamentares. Sempre alguém que usava crack até a semana passada, tinha muitos filhos e sofria agressões do ex-companheiro. Crianças cuja mãe abandonou, o pai não dá bola e a vizinha meio que cuida. A mãe solteira (sempre), alcoolista, ela própria abandonada pela mãe, criada pelo pai e avós, todos mortos há anos. E o companheiro usuário de crack em volta dela e do filho de 11 meses.
Aquelas perguntas que temos que fazer, meio automáticas, me arrependi de todas.
- Alguma vez já escutaste vozes, Joaquina (33 anos)?
- Sim, doutora, quando tinha 16 anos e usava cocaína. E logo depois que o meu filho (de 1 ano) nasceu. De umas semanas para cá, voltei a escutar.
Em outro caso:
-  O companheiro já foi violento contigo?
- Sim, por muitos anos aguentei. A última vez foi quando estava grávida (há cerca de 3 anos). Mas agora está preso em Charqueadas. Só tenho medo, porque parece que ele sai no mês que vem. Aí vai começar tudo de novo.
Eu sempre suspeitei que Nélson Rodrigues era uma alma ingênua e pura, pois não era médico de família e nem pediatra. 
E os Titãs estavam errados: misérias são diferentes.

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