terça-feira, 11 de março de 2014

Quarto vazio

Não, caros leitores, não estou com síndrome do ninho vazio. Meu ninho está bem cheio e assim ficará  por longos e felizes anos. Tampouco meu quarto vazio representa qualquer coisa deprimente. Ao contrário. Meu quarto vazio representa um começo.
Desde que me mudei para minha casa nova bem velha, ainda não consegui arrumar e consertar tudo o que eu quero. Qualquer família que se muda se depara com um cenário parecido. No meu caso, no entanto, há uma junção das coisas da minha família, que não são poucas, com o que ficou na casa e que pertenceu a família anterior. Que também é minha. É muito bacana, de repente, encontrar um objeto inusitado, trivial, que traz na carona uma história, um momento, uma lembrança. Não me refiro às coisas que alguém se preocupa em dividir, como um piano ou relógio, móveis. Meus achados dizem respeito a um papelzinho rasgado de uma ponta de jornal, onde leio, com a letrinha maravilhosa da minha Wó, as datas de aniversário das funcionárias da casa. Ou um armário perfurado por cupins, onde encontro caixinhas de plásticos e latinhas cheias de preguinhos, parafusos, tachinhas e outras miudezas, minuciosamente organizadas e catalogadas pelo vô. Resquícios da oficina de madeiras. A seringa com agulha torta que ele usava para injetar veneno nos buraquinhos dos cupins, na sua batalha eterna contra os insetos.
Ocorre que não posso guardar tudo. Muito menos em uma casa grande como a minha. Ela viraria um depósito de lixo gigante onde, escondidos no meio de quinquilharias inúteis, haveria alguns objetos de valor real, dignos de serem guardados com carinho.
Então comecei a tarefa que deveria ter sido feita antes da reforma: percorrer cada cômodo e decidir o que fica e o que vai. Resolvi começar pelo porão. Pensei que com o porão limpo, poderia usar para armazenar o que é útil, mas está sobrando na casa. Escolhi começar pelo quartinho lá da frente, o que tem duas janelinhas. Lá estava o carrinho de bebê das meninas, com um pneu estragado, azulejos e outras sobras da obra, misturados a um marco de porta comido por cupins (sempre eles!), uma caixa de livros empoeirados, revistas do meu apartamento de solteira e livros de medicina mais desatualizados que uma máquina de datilografia. Caixas com recortes de jornal juntados ao longo dos anos da era pré google. Material para jardinagem, baldinhos de praia quebrados, pedaços de fios elétricos, canos de cobre velhos. Tralha. Cacarecos. Aquelas coisas que ninguém sabe por que ainda não estavam no lixo. Foram ficando, não sei bem por quê.
Levei os azulejos para o depósito embaixo da escada, tirei o pó dos livros bons, empilhei as velharias, varri, varri e varri novamente. Consegui arrastar o marco para outra peça, onde havia outros restos de madeira com cupim, a espera de um destino definitivo (os Mensageiros da Caridade não recolhem madeira com cupim, tampouco o lixeiro), livros na estante sem cupim do quarto ao lado, devidamente limpa e desempoeirada, literatura médica inútil na pilha dos papeleiros, assim como os recortes velhos e aquelas revistas de ideologia e qualidade duvidosa e obsoleta. Salvei umas figurinhas e fotos bonitas para as meninas brincarem de recortes.
Varri, tirei o pó, varri mais um pouco. Carreguei mais azulejos, empilhei mais tralhas junto à "barrica do missionário". Fiz isso da manhã até a tarde. Só parei para almoçar.
Minhas mãos ganharam calos, minhas costas doem, suei tanto que cheguei a tontear. Meu pé ganhou uma bolha, arranhei meu joelho. Espirrei continuamente por uns dez minutos, várias vezes ao dia. Usei minha bombinha de asma umas três vezes. Às seis horas da tarde, hora de buscar as crianças na escola, olhei para o quarto. Vazio. Completamente vazio. Não havia nenhuma aranha, nenhuma asa de inseto, nenhuma traça. Sem pozinho de cupim. Nenhum caixote, caixa, tralha, lixo. Nada. O quarto estava deliciosamente vazio. Pronto para começar uma nova história.