quinta-feira, 15 de março de 2012

A Bruxa Malvada do Leste

Aquela, chamada Rotina. Hoje estava num dia meio sem paciência com ela. Atendi e trabalhei a ritmo acelerado, sem muito tempo para respirar, ir ao banheiro ou tirar leite. Lá pelas tantas da tarde, as mamas ingurgitadas e doloridas (a Bruxa Malvada não leva em consideração as mães lactantes), forcei uma pausa para não passar vexame de sair com a blusa molhada por aí.
Ocorre que hoje atendi o que chamamos em Saúde da Família de consulta do binômio. O binômio refere-se à dupla mãe-bebê na sua primeira consulta pós parto. Como médico ou enfermeiro de família atende toda a população, fazemos a primeira consulta da dupla em um mesmo momento, para facilitar a vida da família. E dificultar a nossa, lógico. Nada contra atender a família junta, isso até me dá prazer e alegria. O que complica é a quantidade insana de papel que temos que preencher. Temos que:
1. Encerrar o pré-natal da mãe no livro de vigilância do pré-natal do posto de saúde;
2. Preencher uma ficha de notificação de puerpério da secretaria municipal de saúde;
3. Preencher o prontuário da mãe;
4. Abrir o prontuário do bebê;
5. Preencher a ficha do Programa Pra Nenê, com informações detalhadas sobre a criança e sua situação social;
6. Preencher o Cartão da Criança com informações antropométricas do bebê;
7. Preencher o prontuário do bebê;
8. Registrar o nome e os demais dados do bebê no caderno de vigilância do Prá Nenê do posto de saúde.
Além, evidentemente, das duas consultas propriamente ditas, com as respectivas anamenses e exames físicos da dupla. Isto envolve o exame ginecológico da puérpera, além do restante do exame clínico, e o exame físico completo do recém-nascido. Nesta primeira consulta, também preciso analisar a pega do bebê ao seio materno e tentar tirar todas as (muitas) dúvidas que surgem nos primeiros dias de vida do bebê. Eu acho completamente impossível realizar todas estas tarefas com qualidade aceitável em menos de uma hora. Às vezes, somente a parte clínica me toma uma hora inteira, dependendo do grau de insegurança ou dos potenciais problemas que possa ter a criança e a mãe. Também é necessário orientar a contracepção e a alimentação da nutriz, além de verificar se está tomando suplementação de ferro.
Hoje, por exemplo, atendi duas duplas trabalhosas. Uma mãe adolescente, 17 anos, interessada, cuidadosa e muito insegura. Necessitava de muita orientação e reforço positivo, com os seios machucados e fissurados pela pega inadequada do nenê. Não fosse a colaboração da residente de nutrição, que se dispôs a orientá-la, teria demorado bem mais de uma hora.
O segundo binômio era de uma mãe de 18 anos, segundo filho, ex-companheiro e pai da criança preso no Central. Moram na casa a mãe e seus dois filhos, quatro irmãos dela, entre 7 e 15 anos, e a avó. Oito pessoas sustentadas pelo salário-mínimo da aposentadoria da avó-matriarca, encostada do INSS por doença mental, e mais R$70 do Bolsa-Família. Isto significa que cada membro da família vive com cerca de US$1,60 por dia. Não é miséria, mas é quase. Apesar dos esforços da enfermeira do posto de tentar contato telefônico com esta mãe, ela compareceu no posto apenas agora, e seu pré-natal teve somente uma consulta. Como não temos agentes comunitários, é difícil fazer a busca ativa dessas famílias em situação de vulnerabilidade apenas com a equipe técnica do posto. Outra hora e pouco de consulta. Os papéis acumulavam-se sobre a minha mesa. Acho que a Bruxa Malvada do Oeste chama-se Papelada. Na minha mesa de trabalho, ela tem vida própria e vai dominando cada canto que encontra, até que eu consiga uma pausa dos pacientes para colocá-la em seu devido lugar.
Terminei os binômios mentalmente esgotada, ainda tendo outros pacientes, agendados ou não, para ver. Foi o dia em que as bruxas estava realmente soltas.
***
Tudo valeu a pena para chegar em casa e, depois de me recompor, dar banho na Joana, que tentava "agarrar" a água que caía do chuveirinho.

Um comentário:

  1. Sugiro chamar a madame Mim. São assustadoramente felizes nossas vidas! Nem por isso menos desgastantes. Adorei!

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