terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Licença poética


                Formavam um lindo casal. O protótipo do casal moderno. Os dois trabalhavam fora. Por alguns poucos meses eram o que hoje se chama de “dink” – double income, no kids. Pouquíssimos meses. Na verdade, três. Moravam em um lindo apartamento no centro. Moderno, isso de morar em apartamento, com elevador, porteiro e tudo o mais. Linda vista para o Guaíba.
                Haviam casado no início do ano, nos primeiros dias de janeiro. E se mudaram para o apartamento. Era uma época em que as pessoas primeiro casavam e depois se mudavam.  Ela lecionava, ele, advogado. Pouco após o início das aulas, sentiu-se mal pela primeira vez. Saiu da sala de aula às pressas para não vomitar na frente dos alunos. Não se fazia exame de urina naquela época, exame algum. As outras professoras, que tinham ido ao casório, trocavam risinhos pelos corredores:
                - Será que já está? Não custou muito, hein? - cochichavam, entre risos.
                Parecida ter perdido peso (se é que era possível perder algum dos seus 45 kilos). As blusas com os botões meio esgaçados, os seios visivelmente maiores. E, ela sabia (e só ela sabia), não tinha sangrado no mês anterior.
                Uma onda de felicidade e contentamento tomava conta do seu pensamento. Milhares de ideias na mente. Queria contar pra todo mundo. Não tinha bem certeza, mas quase. Só que aquele enjôo era muito chato. Será que era normal? Tinha uma irmã mais velha, mas que ainda não tinha filhos. As colegas de trabalho consolaram:
                - Está tudo bem, só não deves ficar em jejum. Quando a mulher enjoa é porque o nenê é forte – disse uma, mãe de três filhos.
                - Já tens desejos? Quando fiquei grávida tinha vontade de comer rabanete – contava outra, com sua barriga já bem adiantada – E ontem o coitado do André Luiz teve que ir às pressas ao Mercado comprar um salame, lá na banca do Holandês. Já pensou se nasce com cara de salame?
                As outras riam. E ela ficava quietinha, um sorriso de Monalisa, concentrando-se para não vomitar na sala dos professores. Graças a Deus o marido não fumava. Nada a enjoava mais do que o cheiro do cigarro.
                E os meses passaram, a barriga crescendo devagar, no meio daquele corpinho enxuto. E chegou o mês de maio. E todo o céu veio abaixo ao mesmo tempo, como um dilúvio bíblico. As notícias chegavam pelo rádio e eram assustadoras. Não havia o que comprar, o Mercado Público debaixo d’água. Os bondes não funcionavam. Havia barcos navegando pela Praça XV. E então, foi-se a luz. Ela sozinha em casa, grávida o suficiente para estar cansada e com medo. O céu escuro como noite, embora fossem apenas cinco da tarde. Como iria subir e descer doze andares de escada? E o nenê? Mulher grávida não devia se exercitar. Ela sabia muito bem disso. Finalmente, ouviu a chave a girar na porta. Ele conseguira voltar do escritório. Molhado da cabeça aos pés, apesar do guarda-chuva e das galochas, contava que não havia eletricidade em parte alguma. Estava esbaforido de descer as escadas do escritório, caminhar nas ruas alagadas e subir para o apartamento. Ele vestiu uma roupa seca, ela terminou de preparar o café. Entreolharam-se, procuraram as velas e lamparinas, abriram a cortina e ficaram olhando a chuva cair, inclemente, incessante. Contínua. Não se enxergavam ruas na parte baixa do Centro. A cidade virara Veneza. Ele se lembrou de sua viagem à Europa, alguns anos antes de casar. Ficaram namorando suavemente durante aquela noite, curtindo a barriguinha a crescer e imaginando a família que começavam. Queriam oito filhos. Olharam em volta do seu pequeno apartamento (provavelmente enorme para os padrões atuais) e riram, ao imaginar oito crianças correndo por ali. Começaram a pensar na casa que comprariam após o nenê nascer. Se desse outra enchente, não haveria toda a escadaria para se preocupar.
                No dia seguinte, ela e o marido desceram calmamente as escadas e, aconselhadas pelo médico da família, instalaram-se na casa do cunhado, sem escadarias para por em risco o início da sua grande família.

Um comentário:

  1. É de fazer a gente verter água como as que inundaram tudo naquele tempo...

    ResponderExcluir