quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Dona Firmina

Ontem atendi em consulta a D. Firmina. É uma senhora magrinha, dos seus 67 ou 68. Aparenta mais, com muitas rugas no rosto emagrecido. Contara-me, há cerca de 6 meses, na consulta anterior, que morava sozinha. Trouxera junto uma receita do cardiologista que a acompanha há anos no hospital universitário. D. Firmina tem pressão alta, diabete, colesterol alto e obstrução das artérias do coração. Toma uma porção de remédios:

Captopril 25mg 2 comprimidos 3 vezes no dia;
Hidroclorotiazida 25mg pela manhã;
AAS infantil na hora do almoço;
Isossorbida 20mg meio comprimido 2 vezes no dia;
Sinvastatina 20mg 1 comprimido à noite
Omeprazol 20mg 1 comprimido em jejum
Metoprolol 100mg 1 comprimido 2 vezes no dia
Metformin 850mg 1 comprimido 3 vezes no dia.

É uma prescrição bem complicada. Há remédios duas ou três vezes no dia, alguns a serem tomados pela manhã, alguns à noite, outros em jejum e mais outros com a comida. Se eu tivesse que tomar diariamente essa montanha de comprimidos, certamente seria difícil de lembrar de cada um deles.
Na primeira consulta, notei que a glicose no sangue, medida na pontinha do dedo no posto de saúde, estava alta. A pressão, aferida no grupo dos hipertensos e diabéticos em acompanhamento na unidade semanalmente e anotada em uma tabelinha, mantinha-se sempre acima do desejável. Perguntei sobre a alimentação, sobre atividade física, na tentativa de descobrir o que ia errado. Não comia doces, não adoçava o cafezinho, abolira as frituras e a banha no feijão. Quase nada de sal, disse-me ela. E também parara com o macarrão instantâneo. A nutricionista já havia explicado tudo. Tinha dificuldade de caminhar por conta de dores crônicas nos joelhos. E não tinha dinheiro para pagar uma hidroginástica (sugestão do cardiologista).
- E os remédios, D. Firmina, como está tomando? - perguntei, coçando a cabeça.
- Tomo todos direitinho, doutora. Conforme o doutor do hospital mandou.
- A que horas toma cada um?
- Tomo um de cada pela manhã. Não é assim, doutora? É que não sei ler. Não sei o que escreveram neste papel - apontava para a receita.
Senti uma dor no coração. D. Firmina é o que se pode chamar de paciente aderente. Tem vontade de se cuidar, quer tomar os remédios prescritos. Na medida do possível, faz tudo o que pedimos. Mas recebera uma prescrição que, naquele momento, parecia uma peça de ficção científica. Lógico, como a pessoa iria memorizar o que tomar de cada vez? Peguei o bloco de receituário e caneteei:
captopril, metoprolol e metformin: 2 vezes no dia
Sinvastatina e AAS somente à noite
Omeprazol, isossorbida e hidroclorotiazida somente pela manhã;
E tudo um comprimido só.
Ora bolas! E já achei bem complicado assim. A estagiária de medicina que acompanhava a consulta ficou apavorada. Como eu iria tirar medicações se o controle estava ruim?
Não seria o caso de mandá-la de volta ao hospital para o cardiologista acrescentar mais coisas? Ela teria retorno somente em 4 meses no hospital.
Expliquei a ela que a prescrição mais simples, dividindo os remédios em dois blocos, seria mais fácil de tomar corretamente. E pedira à técnica em enfermagem da farmácia do posto que separasse os remédios por horário, para ficar mais fácil.
Na porta do consultório, na saída da primeira consulta, disse à D. Firmina que havia um projeto de alfabetização de adultos na Biblioteca Comunitára Ilê Ará (http://bibliotecaileara.blogspot.com.br), próximo à Cruz, em cima do morro. Ela deu de ombros, mas disse que iria visitar o local.
Na consulta de ontem, D. Firmina voltou com a pressão muito mais bem controlada. Recebera os parabéns até mesmo do cardiologista do hospital, que manteve a minha prescrição mais simples. Os exames bons e o diabete controlado. Cumprimentei-a pela melhora e, quando a acompanhava até a porta, ela me deu uma abraço e disse:
-Tenho que correr, doutora. Vou lá no Instituto de Identificação.
-Fazer o quê lá, D. Firmina?
-Vou buscar minha carteira de identidade nova. Agora já sei escrever o meu nome. Não sou mais analfabeta.
O Brasil demorou 68 anos para alfabetizar D. Firmina. Obrigada, Biblioteca Ilê Ará!

Um comentário:

  1. Isabel, que lindo!!!
    Vou separar livros e revistas para ajudar a Biblioteca Ilê Ará.

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