quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Acabaram-se as minhas férias. Ontem voltei ao trabalho e à vidinha de sempre. Os dramas e a montanha-russa que é a rotina de um posto de saúde. As pessoas nos procuram para resolvermos seus dilemas, com dimensões de tragédia grega. Só que de verdade. Somos os porteiros do sistema. O primeiro contato com o sistema, e também o menos equipado. Na cartilha é bem simples. Casos de idosos vítimas de violência, maus tratos ou negligência devem ser, segundo o estatuto do idoso, encaminhados à polícia ou ao Ministério Público. Como se a denúncia fosse resolver alguma coisa.
Há cerca de 8 ou 9 meses, ainda grávida da Joana, atendi uma senhora de cerca de 80 anos com uma queixa de emagrecimento. Dizia a cuidadora que ela recusava-se a comer e que era agitada à noite. Fora levada a uma emergência psiquiátrica e devidamente medicada, a ponto de estar "chapada" durante a consulta. Além de tudo, a senhora era surda. Eu, assim como toda a equipe, que já conhecia o caso havia mais tempo, suspeitávamos que a d. Maria não recusava-se a comer. Achávamos que não lhe era oferecida alimentação adequada. Ela não apresentava equimoses ou outros sinais de violência física, mas o relato de quem visitara seu domicílio era de que o mau cheiro era terrível e que ela ficava todo o dia sedada, deitada na cama ou sentada em um cadeira a olhar para o vazio.
Foi notificado o Ministério Público, como manda a lei. Inclusive, foi uma assistente social visitá-la. Um juiz determinou que sua pensão de dois salários-mínimos fosse utilizada em seu benefício. Mas ela continuou a ser cuidada pela mesma pessoa, desinteressada e sem afeto por ela. E esta pessoa (nós achamos) continuou a aproveitar o dinheirinho da pensão em benefício próprio. E a d. Maria continuou a emagrecer a olhos vistos. E o Ministério Público foi novamente notificado. Semana passada, uma vizinha levou a d. Maria ao hospital, onde recebeu alimentos e hidratação. Na nota de alta, dizia que chegara desnutrida e desidratada.
Hoje, a cuidadora foi ao posto solicitar que um dos médicos assinasse o atestado de óbito da d. Maria. Não sabemos as circunstâncias da morte, pois ela foi encontrada sem vida em cima da cama. Acho que morreu de tristeza, mas não dá para escrever isso no atestado de óbito.
Vou guardar na minha memória o seu sorriso tímido, apesar de todos os remédios, no primeiro dia em que lhe atendi, quando consegui me comunicar consigo, apesar da cuidadora e da sua surdez. Vou me lembrar da sua mão, que tocou minha barriga enorme, e da sua voz quase apagada que sussurrou:
- Boa sorte, nenezinho, tenha uma vida melhor que a minha. Uma boa hora, minha filha.
Vá em paz, d. Maria. Que a morte lhe traga o alívio que a vida não lhe deu.
Desculpem a postagem triste. Estou triste pela minha incapacidade de dar à d. Maria uma morte menos banal e menos sofrida. A velha mania de médico de achar que poderia resolver tudo. Amanhã vai ser melhor.

Um comentário:

  1. Também acho triste a falta de carinho com os velhos. E é um prolema antigo na humanidade, pensar que o final da vida não tem valor, não deve ter cuidados.

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