quarta-feira, 23 de maio de 2012

Caderninho

Achei nos alfarrábios da família um caderninho. Tem a capa dura com dois passarinhos em relevo. Ele pertenceu a uma menina de 13 anos que viveu em São Leopoldo em 1887. No caderninho, ela escrevia suas coisinhas, o nome das colegas, os aniversários das amigas, dos irmãos, dos pais. Descreveu os presentes que ganhou dos irmãos, o dinheirinho que os mais velhos lhe davam como agrado. Anotava também as notas da escola e o que estudava na época. Tudo com a letra mais linda que já vi na minha vida. E em português, não em alemão, que devia ser a língua falada na casa.
Xeretei o caderninho sentindo-me quase a violar os segredos daquela mocinha. Eram as suas notinhas. Talvez não fossem secretas, não era propriamente um diário. Mas era onde ela anotava coisinhas a serem guardadas.
A autora do caderninho era minha bisavó Josephina, mãe do vô Berto. Nunca soube muito sobre ela. Morreu de tuberculose quando o vô tinha apenas 11 anos. Recordo-me do seu rosto através de uma foto que tinha no gabinete do vô. Uma foto séria, sisuda, como eram as fotos naquela época. Sei que era professora e mãe de 12 filhos. Sei que uma vez deixou de dar zero a uma aluna porque seu filho Egberto, de cinco ou seis anos, pediu que não o fizesse, pois achava-a engraçadinha.
Mas o caderninho não era da professora e mãe de todos aqueles filhos. Era o caderninho de uma menina, no início da adolescência, que tinha a letra bonita e gostava de anotar suas coisinhas. Um túnel do tempo. Fiquei a imaginá-la, de vestido, cabelos castanhos e soltos, compridos, diferentes do penteado preso da foto. Imaginei como teria sido quando ganhou o caderninho. Como seria sua vida de menina no Vale dos Sinos no século XIX.
O caderninho tornou-se uma relíquia, que ficou com o tio Lito, irmão menor do vô, por quase toda sua vida. Já bem idoso, deu-o de presente ao vô, que ficou comovido com aquela recordação da mãe. O vô sempre se comovia quando falava na mãe. Viveu seus 94 anos muito bem vividos, teve seus filhos, netos, bisnetos, foi advogado, professor, funcionário público. Mas nunca superou completamente a morte prematura da vovó Josephina.
Acho que todas as mães têm um pouco este medo, este pânico. Quem vai cuidar das crianças se algo ocorrer a elas? Quem vai conhecer cada mania, cada jeitinho? Quem vai saber como tem que ser o banho, qual a história predileta, qual música para se acalmar depois de um susto? Quem vai ter paciência e compreensão com cada medo e cada faniquito?
Alguém vai cuidar das crianças que, como meu avô e seus irmãos, perderam a mãe muito cedo (eles mesmos foram cuidados pelo pai e por uma madrasta que, tenho certeza, fez o melhor que pôde ao casar-se com um viúvo pai de vários filhos adolescentes e alguns ainda pequenos) Mas nunca vai ser a mãe. Fico feliz em viver em uma época em que tuberculose, como tantas outras doenças, tem cura. E fico feliz e nostálgica ao visitar outra época através do caderninho da bisavó que não conheci.

Um comentário:

  1. Bebelzinha! Este e outros caderninhos de nossas vidas estão guardados com muito carinho. Faz bem folheá-los de vez em quando...

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