segunda-feira, 5 de maio de 2014

Poetinha

Há 20 anos, Mário Quintana pode finalmente deitar de sapatos. Virou poeira ou folha levada do vento da madrugada. Mas jamais um pouco de nada...
O Mário Quintana é aquele sujeito que escreveu umas coisas que eu lia e pensava:
- Como eu queria ter escrito isso, ter pensado isso.
Que bom que ele pensou, escreveu, e eu pude ler.
A Vó Mila morava no Centro, no tempo em que ainda não era o Centro Histórico. Era só o Centro. Da janela da área se serviço, dava pra ver a Praça da Alfândega. Com sorte, o poeta velhinho estava a fazer o ser footing. Adorava a possibilidade de vê-lo. Acho que só aconteceu uma vez, mas ser possível avistar o Mário Quintana era ótimo.
Publico um dos meus favoritos...


De Gramática e de Linguagem

E havia uma gramática que dizia assim:
"Substantivo (concreto) é tudo quanto indica
Pessoa, animal ou cousa: João, sabiá, caneta".
Eu gosto das cousas. As cousas sim !...
As pessoas atrapalham. Estão em toda parte. Multiplicam-se em excesso.

As cousas são quietas. Bastam-se. Não se metem com ninguém.
Uma pedra. Um armário. Um ovo, nem sempre,
Ovo pode estar choco: é inquietante...
As cousas vivem metidas com as suas cousas.
E não exigem nada.
Apenas que não as tirem do lugar onde estão.
E João pode neste mesmo instante vir bater à nossa porta.
Para quê? Não importa: João vem!
E há de estar triste ou alegre, reticente ou falastrão,
Amigo ou adverso...João só será definitivo
Quando esticar a canela. Morre, João...
Mas o bom mesmo, são os adjetivos,
Os puros adjetivos isentos de qualquer objeto.
Verde. Macio. Áspero. Rente. Escuro. luminoso.
Sonoro. Lento. Eu sonho
Com uma linguagem composta unicamente de adjetivos
Como decerto é a linguagem das plantas e dos animais.
Ainda mais:
Eu sonho com um poema
Cujas palavras sumarentas escorram
Como a polpa de um fruto maduro em tua boca,
Um poema que te mate de amor
Antes mesmo que tu saibas o misterioso sentido:
Basta provares o seu gosto...

Mario Quintana
(1906-1994)

Nenhum comentário:

Postar um comentário