terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Dia extremamente quente aqui na terrinha. O termômetro da minha sala no trabalho não chegou aos 36 da semana passada, apenas a meros 34 graus. Mas deu pra suar. Além disso, havia operários que trabalharam no posto durante todo o dia. Com uns aparelhos muito barulhentos bem do lado do consultório em que eu atendia. Desisti de tentar examinar alguém decentemente, o que normalmente envolve uma boa parcela de audição. Impraticável. Pobres moços, suavam às bicas, bem mais do que eu.
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Passei o dia meio tristonha, com muita saudade do vô, que completaria 98 anos hoje. Meu consolo foi vizualizar uma "festa no céu" com todos os que já foram. Uma coisa meio último episódio de Lost. Todos eles bem, mais jovens, saudáveis, tranquilos. Muito tranquilos. Acho que esta foi a imagem que me fez atravessar melhor o dia. Mesmo que a data do aniversário seja uma comemoração terrena, pude ver os velhinhos da família aproveitando a vida (depois da morte). É uma forma de vida, também, mesmo que só dentro da minha cabeça. Ou não.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Carnaval

Enquanto escrevo esta postagem, escuto da minha janela do nono andar uma bandinha tocar marchinhas de carnaval. Estão na frente de um boteco na Rua da República. Muito engraçado, agora eles estão tocando música gaudéria em ritmo de marchinha de carnaval. É um trompete e meia-dúzia de tambores, não tem microfone. Às vezes dá para escutar o povo cantando junto. Passei mais cedo com a Luísa na frente do boteco, no caminho do supermercado. Estavam tocando um sambinha. Um monte de sotaques diferentes em volta, em função do Fórum Social Temático, que ocorre em Porto Alegre e arredores. Os gringos adoraram a batucada. Todos sambando com aquela falta de ginga própria de todos os americanos e europeus. Um grupo que parecia ser de africanos dançava feliz, esses com (muito) mais ginga que os gaúchos. Quando chegamos em casa, a Luísa falou:
- Papai, hoje eu fui no carnval com a mamãe.
E, enquanto escutava a música pela janela, saiu a "sambar" pela sala. Que bom, acho que a Luísa gosta de samba.
Enquanto ouço a melodia de Peguei um Ita no Norte, de Dorival Caymmi, sinto uma saudade doída do meu avô. Um senhor respeitável, advogado, professor de processo civil e de religião. Adorava samba. Dizia que nada era melhor de dançar do que um bom samba bem tocado. E ele gostava muito desta música, do Ita no Norte. Sentava-se ao piano e tocava, com muitos floreios, de ouvido.
Gosto dessas bandinhas que começam a pipocar pelo bairro quando chega perto do carnaval. Há várias delas por aqui. E no sábado anterior ao carnaval, fecham a minha rua (que não tem muita utilidade para o trânsito) e fazem um grande carnaval de rua. Me dá uma sensação boa de pertencer a uma cultura e a uma comunidade. Ouço alguns vizinho que reclamam do barulho. Confesso que esse barulho pouco me incomoda. Talvez porque eu realmente goste das músicas e também porque até hoje eles nunca foram muito além das dez da noite. Agora tocam Cielito Lindo, provavelmente já encerrando a apresentação de hoje (esta bandinha sempre encerra com Cielito Lindo)
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Não me lembro se já escrevi sobre isso aqui, mas às vezes tenho a impressão que Nelson Rodrigues não sabia de nada, era uma alma cândida e inocente. Nada do que ele escreveu compara-se à realidade do que atendemos diariamente. Sexta-feira foi um desses dias "a vida como ela é". Uma sucessão de casos bizarros e trágicos, como uma moça virgem de 26 anos que sofre de ataques de histeria que parecem saídos de um tratado do Freud. A gente quase não encontra moças virgens de mais de 15 anos, que dirá 26. A sucessão de horrores que se seguiu é impublicável e de extremo mau-gosto. Quando o dia finalmente acabou, me abracei na enfermeira e quase começamos a chorar. Mas sorrimos. A tarde fora de tal forma bizarra, que só podíamos rir. Já tínhamos passado do ponto do choro.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

171

A cena é clássica. Chega o segurado com seus 20 e poucos anos na unidade com uma cara de dor e sofrimento, relatando um périplo por pronto-atendimentos e emergências médicas enquanto conta uma história triste sobre como sofreu ao longo de todo o final de semana. Normalmente ocorre segunda ou terça-feira. Traz um boletim de atendimento que diz, basicamente, que o paciente não tinha absolutamente nada e que foi liberado para casa com Tylenol. E aí, o motivo real da consulta: quer um atestado.
A história real (e não a peça de ficção que ele relata durante a consulta) possivelmente envolve música alta, uma quantidade considerável de cerveja e/ou caipirinha e muita carne gorda com salada de maionese. O sofrimento a que se referem é, quase sempre, a baita ressaca pós bebedeira e festa. Às vezes estou meio "galinha d'angola": cheia de pena. Acabo dando o tal do atestado, quando vejo que é um sujeito trabalhador que teve só este deslize. Mas quando é meio de vida, tenho vontade de citar o Chico Buarque com um sonoro "vai trabalhar, vagabundo!"
Também tem aqueles que chegam mostrando uma pilha interminável de exames, alguns de dez anos atrás e me relatando todos os males que passaram ao longo dos anos. Falam sobre alguma doença crônica, real ou imaginária, desde diabete até algum tipo de problema reumatológico obscuro e raro, cujo diagnóstico é de exclusão (ou seja, quando não se acha mais nada errado, deve ser aquilo), que envolve consultas com múltiplos médicos e serviços de saúde e não prejudica os planos de ir para a praia. Motivo do atendimento: laudo para obter benefício do INSS. Ocorre-me que, se gastassem tanta energia trabalhando como gastam tentando receber sem trabalhar, economizariam tempo: o deles e o meu.
As pessoas não querem trabalhar. Quer saber? Eu também não. Mas não tem jeito, tem que ir, tem que atender a malandragem que tenta não trabalhar às custas do meu trabalho.
Por tudo isso, me surpreendeu o senhor de aparência humilde, magro, músculos definidos, 65 anos, que foi à consulta pela manhã para pedir um laudo que o liberasse para o trabalho. Ele quer trabalhar. Como trata-se de um provecto senhor, o patrão, dono de uma empreiteira, achou melhor pedir uma avaliação médica antes de contratá-lo para exercer a atividade de pedreiro.
- Que é que vou fazer em casa, doutora? Não tenho paciência pra televisão - disse ele, antes de me contar que formou dois filhos na universidade com o salário da construção civil, além dos biscates.
- Eles dizem que eu não preciso mais trabalhar, mas vou ficar doente se ficar "devalde".
E vai mesmo. Hoje, aos 65 anos, não tem pressão alta, diabete, não sofre dos nervos e nem tem problema cardíaco. Nunca teve dor nas costas ou nas juntas. Seu único vício é o cigarro, mas diz que fuma menos quando trabalha do que em casa. E quer parar.
Bravo, seu Jair! Adorei fazer um laudo atestando sua capacidade para o trabalho. Depois, bati meus calcanhares três vezes e disse "não há lugar como a nossa casa", antes de voltar à realidade do posto e lidar com todos os "171" que o dia prometia.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Estátua

Dia desses estava no carro com a Luísa (que não está e nem esteve no Canadá) e passamos ao lado da rodoviária, onde há uma estátua meio modernosa, um homem que talvez seja o atlas, segurando um globo estilizado na frente de um hotel. Lulu olhou pela janela do carro (estava um trânsito danado, ninguém conseguia andar) e disse:
- Olha, mamãe, um homem de brinquedo! Ele tá segurando uma bola.
Nunca havia pensado em uma estátua como um homem de brinquedo. Achei que fazia todo o sentido. Ela brinca com bonequinhas, que são pessoas de brinquedo. Só muda a escala. Fiquei pensando se ela imaginou um gigante aparecendo na calada da noite para brincar com seu "homem de brinquedo". Adoro o ponto de vista das crianças pequenas, que descrevem o que veem de um jeito que nós, adultos, nunca iríamos pensar.
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Joana hoje completou meio ano de vida. Para comemorar, saboreou umas colheradas de uma maçã raspada. Primeiro fez cara de nojo:

 Depois, comeu algumas colheradas com uma cara mais feliz. A banana ainda não desceu, mas ela tem o resto da vida dela para provar tudo isso.
Em Porto Alegre, faz um calor senegalesco. Gostaria muito de um ar condicionado, mas a rede elétrica do nosso posto de saúde não comporta. E há 6 (isso mesmo, seis) aparelhos parados dentro da unidade. Coisas de Brasil.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Coleção

Algumas pessoas gostam de coleções. Eu adoro álbum de figurinhas até hoje. Minha Wó gostava de colecionar colherinhas (souvenirs de viagens) e xícaras de cafezinho. O vô colecionava miniaturas. Mas a vantagem dos tempos modernos é que é possível colecionar coisas virtualmente. É ótimo, não pega poeira, não enche a casa de coisas e custa pouco ou nenhum dinheiro. Pois minha coleção é de obras de arte (fotos delas) com o tema gestação e, principalmente, amamentação. Muito antes de ter as meninas, sempre gostei de colecioná-las. Comecei procurando na internet. Agora, sempre que viajo, tento fotografar ou comprar reproduções de pinturas ou esculturas com mulheres amamentando. No Louvre, tem pilhas. descobri que era um tema recorrente durante a idade média. Há muitas "madonna and child" onde a "child" está mamando na "madonna". A maioria de antes da renascença. Aí, parece que amamentar virou pecado. Depois, voltam os bebês mamando, mas não de Nossa Senhora e Menino, no século XIX. No Musée d'Orsay, acho que fotografei umas dez. Todas devidamente arquivadas no computador. Também às vezes garimpo fotos de outros mamíferos amamentando suas crias. É meio que uma loucurinha minha, acho que coisa de pediatra.
Uma das minhas preferidas é daqui de Porto Alegre. Fica no Palácio Piratini, num mural do Aldo Locatelli no Salão Negrinho do Pastoreio.




Com o perdão da foto não muito bem tirada (é um detalhe de um mural enorme), acho essa obra linda, uma mãe alimentando o bebê no meio de um acampamento.
Me faz sentir humana, até meio "bicho", participar desta enorme classe classificada por Lineu como Mamalia. Somos todos mamíferos.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Leite Materno

Em quatro dias, minha filha Joana completará seis meses. É quando começará a receber alimentos diferentes do leite materno. Quando eu deixarei de ser a única provedora da sua alimentação. Porque até agora, foi tudo eu. Desde a gestação até este momento, o meu corpo produziu absolutamente todos os nutrientes que a fizeram crescer. É uma sensação incrível de dever cumprido, vê-la fofinha e esperta, a sentar sozinha e pegar objetos para depois botar na boca.
Nem sempre isso é possível. Eu tive a sorte de trabalhar em um lugar e com uma equipe que me permitiram tirar leite todos os dias, pela manhã e à tarde. No horário de almoço, venho para casa amamentar "ao vivo". Também é bom viver em uma época com tecnologia para produzir uma maravilha chamada "bomba elétrica de tirar leite". E portátil. Melhor invenção desde a bic cristal.
A partir do próximo final de semana, porém, Joana começará a receber frutas e sopinhas que, gradualmente, substituirão completamente o meu leite. É quando ela passa a ser um pouquinho mais do mundo e um pouquinho menos "só minha". É quando começamos a lentamente torná-la um ser autônomo e independente de mim. Sei que vou ter saudade desta época louca de ela receber somente leite materno enquanto eu trabalho 40 horas por semana. Mas também, vem um certo alívio. Vou sentir falta de vir em casa almoçar e amamentar todos os dias (meu horário especial de amamentação termina aos seis meses). Mas vou poder ir trabalhar de ônibus e não esquentar a cabeça com trânsito e lugar para estacionar. E... é, acho que não me estressar com o trânsito é a única vantagem de não poder vir em casa para almoçar e amamentar.
Minha sábia Wó Wanda, logo que a Luísa nasceu, me disse que a maternidade é a arte de se desapegar. Porque a gente se apaixona por aquele "bichinho" recém-nascido, todo enroladinho, que dá grunhidos suaves e, quando percebe, tem um bebê fofucho que quer pegar todas as coisas e metê-las na boca. E logo já vai caminhar e falar e virar uma pessoa de verdade. E é genial acompanhar tudo isso. Mas é um exercício de desapego. Cada dia eles são mais deles mesmos e menos nossos.
E é assim que tem que ser.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Noite passada, sonhei com o meus avós Olyntho e Mila, pais do meu pai. Sonho sem pé nem cabeça, como todo o sonho deve ser. Lá pelas tantas, estávamos dentro de uma piscina, e eu tentava falar com o vô. Algo se passava, e eu não conseguia conversar. No próprio sonho eu sabia o quão inusitado era aquele encontro. Queria perguntar a ele tantas coisas.
O vô Olyntho era pediatra. Ele morreu quando eu tinha uns 3 ou 4 anos. Tenho poucas recordações dele. Conheci melhor a vó, que se foi há pouco mais de dez anos. Mesmo assim, foi um convívio infinitamente menor do que aquele com meus avós maternos. Sinto uma nostalgia do tempo que eu não tive com eles.
No sonho, eu precisava me aproximar deles. Precisava perguntar como era a vida naquela outra época. Como era ser pediatra nos anos 1940 ou 50? Pagavam melhor? Como era a residência médica? Por que o vô não seguiu carreira acadêmica (ele publicou vários artigos no Jornal de Pediatria)? Era comum as pessoas publicarem assim? Talvez por eu ter seguido seus passos, mesmo com tão pouco convívio, precisava saber que tipo de pediatra ele era. (Aqueles que o conheceram, mesmo com o viés familiar, dizem que era um bom médico. Meu pai dizia que ele era quem procuravam quando os outros não tinham feito o diagnóstico. Uma espécie de Dr. House pediátrico porto-alegrense)
No sonho, eles não estavam em 2012. Eles estavam vivos e bem, lá pelos seus 40 e poucos. A vó tinha acabado de ganhar nenê, só não sei qual. Era como se eu tivesse pegado um trem e ido parar na década de 1940. Meio como aquele filme, Meia-Noite em Paris, em que passa um carro à meia-noite e leva o escritor, personagem de Owen Wilson, para a Paris do passado. Não tinha ninguém ilustre no meu sonho. Só o vô e a vó. Acordei no meio da noite com a Joana querendo mamar e, quando a coloquei de volta no berço para voltar a dormir, fiquei tentando "voltar" para o sonho. E na hora da sesta, de novo. Fiquei com o sonho na cabeça o dia todo, tentando saboreá-lo, antes que desaparecesse totalmente.
Acho que sonho também serve pra isso, né? Matar a saudade de alguém que foi embora há muito tempo. De alguma maneira, eles continuam vivos assim, quando pensamos ou sonhamos com eles.
É tarde. Vou dormir. Quem sabe eu não sonho com mais alguém querido, em outra época?

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Rebeldes

Há cerca de 40 ou 50 anos, o mundo era talvez um lugar mais rebelde do que é hoje. Pelo menos a parte do mundo mais badalada pela imprensa. Havia revoltosos em Paris (como sempre haverá), havia Woodstock, pessoas marchavam contra guerras e ditaduras. Os ideais eram nobres. O socialismo era lindo e a maconha rolava solta. Fumar era bonito e pisar na grama era mais legal que andar na calçada. Transgredir era romântico. As regras pareciam meio estúpidas, melhor fazer diferente. Hay gobierno, soy contra!
Fast forward para 2012. Toda esta rebeldia tem agora 60 ou 70 anos. Senhores e senhoras respeitáveis, cheios de filhos e netos. Alguns viraram pacatos aposentados, em casa, guardados por Deus contando o vil metal. Curtem os netos, viajam pela Europa e cortam a grama. Não pisam mais na grama. Varrem o passeio para todos passarem.
O problema são os outros. Os que ainda fumam e acham que política pública para redução do tabagismo viola algum direito constitucional. São pessoas muito cheias de direitos, mas com poucos deveres. Os que têm a cultura do "trash". Pararam no tempo, em algum lugar aí pelos anos 70, aí pelos 25 ou 30 anos. O problema é que o corpinho não acompanhou. Setenta e um, com corpinho de 84.
Se alguém desta geração estiver lendo esta postagem, peço encarecidamente um favor: continuem sendo rebeldes, leiam Astérix, Mafalda, sejam socialistas. Até pisem na grama, se isto lhes dá prazer. Escutem Carcará, gritem palavras de ordem, elaborem manifestos. Sejam politicamente incorretos, exerçam seus preconceitos. Mas atravessem na faixa de segurança. Sejam rebeldes sem pular a mureta do corredor de ônibus. Por favor, continuem vivos para continuar com a rebeldia. A minha geração, dos 30 ou 40, desistiu dessa quando tinha 16. Viramos capitalistas, pequeno-burgueses, seja lá como queiram chamar as nossas prioridades individualistas e mesquinhas.
O mundo ainda precisa de rebeldes, mas o tempo passa para todos e eu não posso mais ver idosos (sim, os mais rebeldes são os idosos) atropelados por ônibus ou motoqueiros malucos. Porque o mais estranho disso tudo é que os que mais se arriscam são os mais idosos. Os adolescentes parecem ter mais juízo que os avós.
E viva a revolução!

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Ne Me Quitte Pas

Hoje é um daqueles dias em que o cansaço engoliu a inspiração. Quando voltava para o trabalho depois do almoço, estressada e atrasada, ouvi Maria Gadu cantando Ne Me Quite Pas no rádio. E me fez bem. Muito bem.
Espero que faça bem a vocês também.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O Gago

Hoje atendi um senhor gago. Senhor de meia idade, bem apessoado. Casado, três filhos e dois netos. Taxista há quase 30 anos. E gago. Além de gago, meio fanho. O rei George VI era gago, sua história foi recentemente filmada em Hollywood. Era gago, mas não era fanho. Os gagos podem ser muito bem sucedidos. E podem ter o seu charme. Um exercício de auto-controle, não terminar as frases do paciente gago.
Na verdade, a gagueira sequer foi abordada na consulta, cujo motivo foi uma dor nas costas. Tenho certeza que ele aprendeu a lidar com o problema ao longo dos seus 50 anos de vida. Eu é que não aprendi a lidar com alguns pacientes com dificuldade de comunicação. Até acho que a consulta correu bem, segurado saiu satisfeito com a prescrição de analgésicos e fisioterapia. Mas eu estava exausta. Quase como atender em outra língua, com o esforço para entender o que ele dizia, quando finalmente conseguia concluir o pensamento. E o fato de ser fanho não facilitou muito. Ainda assim, um senhor afável e de bem com a vida. Já pensou tudo o que sofreu na escola, quando era guri? E isso que nem se chamava Bullying naquela época.
Em sua homenagem, publico essa postagem e uma musiquinha do Noel Rosa (sempre o Noel), que eu acho muito engraçadinha e na qual pensei o dia inteiro, após ter atendido o gago.
E à demain, que eu sigo em frente

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Tristeza

Hoje estou meio tristonha. Não consegui blindar minha alma para as mazelas que atendi. Vindo para Osório, chorei na estrada. Meio perigoso, chorar na estrada, mas não pude evitar.
Chorei pelo menino de 2 meses que nasceu prematuro, pesando 1,2kg e, após 35 dias na UTI neonatal, foi levado pela mãe para visitar o pai na Penitenciária Estadual do Jacuí, em Charqueadas. Mãe essa que fumara 30 cigarros por dia durante a gravidez, além de consumir uma quantidade razoável de cerveja. Para ela, apesar de todos os apelos feitos pela equipe do posto de saúde, o mais importante é agradar o companheiro, preso por assassinato.
Chorei pelo garoto de 16 anos que começou a ter visões e escutar vozes aos 6 anos, quando testemunhou uma série de assassinatos no bairro da periferia de Curitiba, onde morava com a mãe e o padrasto. Menino que gosta de trabalhar, mas desiludiu-se com os estudos. Chorei por sua mãe, que queria que ele fosse engenheiro, mas está orgulhosa do trabalho de auxiliar de pedreiro que ele conseguiu. E que também chorou na consulta ao me contar sobre seus sonhos para o futuro do filho.
Chorei pela ex-companheira de um outro presidiário da mesma Penitenciária Estadual do Jacuí, que teve a "visita" dos amigos em liberdade do ex-companheiro, a ameaçá-la com revólveres porque ela não quer mais prestar-lhe favores sexuais e levar o filho de 2 anos para visitá-lo em Charqueadas.
E chorei também pelo morador de rua que foi três vezes na mesma tarde no posto pedir a mesma coisa (que já tinha sido pedida ontem), porque provavelmente estava bêbado demais para lembrar que já tinha ido no posto com aquela demanda. E, finalmente, pela funcionária que explicou com a mesma calma e paciência que o problema já havia sido encaminhado, como se conversasse com alguém lúcido e que raciocinava, esquecendo-se do hálito alcoólico e do cheiro de muitos dias de verão sem banho do usuário. Tratou-o com respeito.
Atendo a tragédias como essas quase diariamente. Mas, por qualquer razão, hoje elas me afetaram. Quase nunca compartilho essa rotina, porque acho que a maioria das pessoas não foi treinada para lidar com a miséria humana como médicos de família e pediatras são. Mas hoje eu precisei compartilhar e, assim, tirar toda essa tristeza de cima de mim. Obrigada por me ouvirem.
E à demain, que eu sigo em frente.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Descobri recentemente que tenho uns 80 ou 90 anos, ao menos no que diz respeito ao meu gosto musical. Não é que tenha alguma coisa contra novidades, mas é que gosto mais das novidades de 80 anos atrás. Talvez por já ter me habituado a elas, as novidades dos anos 1930 são sensacionais. Gosto do cotidiano naqueles sambinhas sem compromisso com politicamente correto. Noel Rosa foi o mestre deles. Claro, nem todas as paradas de sucesso daquela época me agradam, mas até o mau gosto era interessante, como nos prova Vicente Celestino em 1937 com seu Coração Materno. Ainda prefiro Coração Materno ao Bonde do Tigrão.
Talvez eu esteja cometendo algum crime em não entender essa forma de expressão tão moderna e certamente serei crucificada pelas gerações futuras, mas é que eu tenho 80 anos. E eu gosto de samba. Eu não desgosto outras coisas, mas eu gosto mesmo é de samba. Outras coisas podem ser legais, e eu procuro manter a cabeça aberta. Gosto de coisas do MV Bill (que, aliás, começou escrevendo sambas enredo), Nega Gizza e MC Racionais. Gabriel o Pensador pode ser interessante, principalmente quando mistura rap com samba. Até sertanejo é bonito (mas aqueles de há 80 anos, como Tonico e Tinoco), só não universitário. Se é pra ser sertanejo, que seja sertanejo mesmo, assumam-se como tal.
Meu problema com o sertanejo, funk, pagode e às vezes com o próprio samba é que eu acho que os compositores fizeram um acordo sindical que diz que só podem usar uma lista de 50 palavras. Nenhuma outra. Só aquelas 50. Sempre. E aí, a coisa fica um pouquinho monótona. O Noel Rosa usava mais palavras. O Adoniran Barbosa acho que inventou uma meia-dúzia. Vicente Celestino puxava umas do fundo do baú. MV Bill usa outras palavras. E usa bem.
Mas não é o sambinha gostoso no Noel e do Adoniran. Não é a Conversa de Botequim. Nem o Samba Italiano. Acho que era uma época talvez mais inocente. Não acho que fosse necessariamente melhor. Só mais fácil de entender (pelo menos para mim, que nasci 50 anos depois e tive tempo de estudar um pouco melhor). É só olhar os indicadores sociais do Brasil para saber que não era muito melhor. A taxa de mortalidade infantil passava de 100 por mil nascidos vivos no Rio Grande do Sul. (Hoje, é menor que 10), as pessoas certamente tomam mais banhos e os desodorantes funcionam melhor. Já pensou o cheiro nas cidades, com esgoto precário e povo sem desodorante? Tinha menos carro, menos riqueza mas, olhando de agora, tudo parece mais romântico.
Infelizmente, não tenho uma máquina do tempo para tirar minhas próprias conclusões. Mas posso ouvir os milhares de fonogramas que sobreviveram e saber o que as pessoas escutavam no rádio. E sem cheiro ruim nem mortalidade infantil alta. Acho que fico com a atualidade, que me permite ter gosto musical de 80 anos com corpinho de 34. E também me permite compartilhar todas essas bobagens com qualquer um que quiser ler, via internet. Era mais complicado fazer isso no tempo do Noel Rosa.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Fogos

Então mais um ano acabou. Conforme previsto, Luísa teve um ataque de nervos com os barulhos. Ela estava mais dormindo do que acordada e não quis nem olhar nem para os fogos de Copacabana na TV e nem para os que se via da frente de casa. Só chorava, dizendo:
- Tá ruim aqui, tá ruim aqui!
Acabei tendo que acordá-la, acender a luz e lavar seu rostinho para que ela se acalmasse. Depois voltou a dormir e só acordou depois de amanhecer.
Joaninha, ao contrário, não tomou nenhum conhecimento do Reveillon. Dormiu o tempo todo, durante os fogos e durante a festa com sertanejo-universitário-versão-bate-estaca do vizinho de trás. (por que essas pessoas nunca tocam nada que eu gosto?)
Mas entre mortos e feridos, salvaram-se todos.
Agora estou no Portinho a escrever no meu blog enquanto Joana dorme. Luísa ficou em Osório aproveitando os amiguinhos junto com o pai. Aparentemente, esbaldaram-se na pracinha. Amanhã vou buscá-los.
Muito melancólico isso de ficar sozinha com o bebê em Porto Alegre. Não sobrou nem muita inspiração para escrever. Faço-o por puro hábito.
Que tudo se realize no ano que acabou de nascer. Feliz 2012.