quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

171

A cena é clássica. Chega o segurado com seus 20 e poucos anos na unidade com uma cara de dor e sofrimento, relatando um périplo por pronto-atendimentos e emergências médicas enquanto conta uma história triste sobre como sofreu ao longo de todo o final de semana. Normalmente ocorre segunda ou terça-feira. Traz um boletim de atendimento que diz, basicamente, que o paciente não tinha absolutamente nada e que foi liberado para casa com Tylenol. E aí, o motivo real da consulta: quer um atestado.
A história real (e não a peça de ficção que ele relata durante a consulta) possivelmente envolve música alta, uma quantidade considerável de cerveja e/ou caipirinha e muita carne gorda com salada de maionese. O sofrimento a que se referem é, quase sempre, a baita ressaca pós bebedeira e festa. Às vezes estou meio "galinha d'angola": cheia de pena. Acabo dando o tal do atestado, quando vejo que é um sujeito trabalhador que teve só este deslize. Mas quando é meio de vida, tenho vontade de citar o Chico Buarque com um sonoro "vai trabalhar, vagabundo!"
Também tem aqueles que chegam mostrando uma pilha interminável de exames, alguns de dez anos atrás e me relatando todos os males que passaram ao longo dos anos. Falam sobre alguma doença crônica, real ou imaginária, desde diabete até algum tipo de problema reumatológico obscuro e raro, cujo diagnóstico é de exclusão (ou seja, quando não se acha mais nada errado, deve ser aquilo), que envolve consultas com múltiplos médicos e serviços de saúde e não prejudica os planos de ir para a praia. Motivo do atendimento: laudo para obter benefício do INSS. Ocorre-me que, se gastassem tanta energia trabalhando como gastam tentando receber sem trabalhar, economizariam tempo: o deles e o meu.
As pessoas não querem trabalhar. Quer saber? Eu também não. Mas não tem jeito, tem que ir, tem que atender a malandragem que tenta não trabalhar às custas do meu trabalho.
Por tudo isso, me surpreendeu o senhor de aparência humilde, magro, músculos definidos, 65 anos, que foi à consulta pela manhã para pedir um laudo que o liberasse para o trabalho. Ele quer trabalhar. Como trata-se de um provecto senhor, o patrão, dono de uma empreiteira, achou melhor pedir uma avaliação médica antes de contratá-lo para exercer a atividade de pedreiro.
- Que é que vou fazer em casa, doutora? Não tenho paciência pra televisão - disse ele, antes de me contar que formou dois filhos na universidade com o salário da construção civil, além dos biscates.
- Eles dizem que eu não preciso mais trabalhar, mas vou ficar doente se ficar "devalde".
E vai mesmo. Hoje, aos 65 anos, não tem pressão alta, diabete, não sofre dos nervos e nem tem problema cardíaco. Nunca teve dor nas costas ou nas juntas. Seu único vício é o cigarro, mas diz que fuma menos quando trabalha do que em casa. E quer parar.
Bravo, seu Jair! Adorei fazer um laudo atestando sua capacidade para o trabalho. Depois, bati meus calcanhares três vezes e disse "não há lugar como a nossa casa", antes de voltar à realidade do posto e lidar com todos os "171" que o dia prometia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário