Descobri recentemente que tenho uns 80 ou 90 anos, ao menos no que diz respeito ao meu gosto musical. Não é que tenha alguma coisa contra novidades, mas é que gosto mais das novidades de 80 anos atrás. Talvez por já ter me habituado a elas, as novidades dos anos 1930 são sensacionais. Gosto do cotidiano naqueles sambinhas sem compromisso com politicamente correto. Noel Rosa foi o mestre deles. Claro, nem todas as paradas de sucesso daquela época me agradam, mas até o mau gosto era interessante, como nos prova Vicente Celestino em 1937 com seu Coração Materno. Ainda prefiro Coração Materno ao Bonde do Tigrão.
Talvez eu esteja cometendo algum crime em não entender essa forma de expressão tão moderna e certamente serei crucificada pelas gerações futuras, mas é que eu tenho 80 anos. E eu gosto de samba. Eu não desgosto outras coisas, mas eu gosto mesmo é de samba. Outras coisas podem ser legais, e eu procuro manter a cabeça aberta. Gosto de coisas do MV Bill (que, aliás, começou escrevendo sambas enredo), Nega Gizza e MC Racionais. Gabriel o Pensador pode ser interessante, principalmente quando mistura rap com samba. Até sertanejo é bonito (mas aqueles de há 80 anos, como Tonico e Tinoco), só não universitário. Se é pra ser sertanejo, que seja sertanejo mesmo, assumam-se como tal.
Meu problema com o sertanejo, funk, pagode e às vezes com o próprio samba é que eu acho que os compositores fizeram um acordo sindical que diz que só podem usar uma lista de 50 palavras. Nenhuma outra. Só aquelas 50. Sempre. E aí, a coisa fica um pouquinho monótona. O Noel Rosa usava mais palavras. O Adoniran Barbosa acho que inventou uma meia-dúzia. Vicente Celestino puxava umas do fundo do baú. MV Bill usa outras palavras. E usa bem.
Mas não é o sambinha gostoso no Noel e do Adoniran. Não é a Conversa de Botequim. Nem o Samba Italiano. Acho que era uma época talvez mais inocente. Não acho que fosse necessariamente melhor. Só mais fácil de entender (pelo menos para mim, que nasci 50 anos depois e tive tempo de estudar um pouco melhor). É só olhar os indicadores sociais do Brasil para saber que não era muito melhor. A taxa de mortalidade infantil passava de 100 por mil nascidos vivos no Rio Grande do Sul. (Hoje, é menor que 10), as pessoas certamente tomam mais banhos e os desodorantes funcionam melhor. Já pensou o cheiro nas cidades, com esgoto precário e povo sem desodorante? Tinha menos carro, menos riqueza mas, olhando de agora, tudo parece mais romântico.
Infelizmente, não tenho uma máquina do tempo para tirar minhas próprias conclusões. Mas posso ouvir os milhares de fonogramas que sobreviveram e saber o que as pessoas escutavam no rádio. E sem cheiro ruim nem mortalidade infantil alta. Acho que fico com a atualidade, que me permite ter gosto musical de 80 anos com corpinho de 34. E também me permite compartilhar todas essas bobagens com qualquer um que quiser ler, via internet. Era mais complicado fazer isso no tempo do Noel Rosa.
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