quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Secando gelo

Alguém esses dias sugeriu que eu contasse no blog algumas das muitas desventuras vividas no mundo médico, preservando o sigilo, lógico.
Essa aconteceu no posto onde eu trabalho. Não foi propriamente comigo, eu estava na sala ao lado e ouvi o diálogo insólito do meu colega com um usuário do sistema.
Segunda-feira de manhã, dia nacional da muvuca no posto. Tudo o que esperou o fim-de-semana precisa ser resolvido agora. O povo do meu local de trabalho é até bastante educado e civilizado. Não são dados a barracos nem siricoticos. Mas sempre tem um que é diferente. Lá pelo meio da manhã, no meio do burburinho da recepção, uma voz se destaca, falando mais alto que as outras:
-Eu tenho que resolver meu problema, não querem resolver meu problema.
Eu tinha notado o cidadão ao chegar às 8h para trabalhar. Ocorrera-me Noel Rosa: “tenho passado tão mal. A minha cama é uma folha de jornal”. Aquele cheiro de quem dorme em uma folha de jornal há muito tempo e não vê chuveiro há mais tempo ainda.
O clima começa a ficar tenso. Meu colega atendendo um paciente e eu, na sala da enfermeira, ao lado da dele, preenchendo papeis (que é o que mais fazemos na Estratégia de Saúde da Família). Minha sala mesmo ficava no andar de cima. Mas com 8 meses de gravidez, estava evitando subir e descer escadas e tinha ficado por ali mesmo. Terminado o atendimento, ele decide vestir as calças de homem e chamar o segurado na chincha:
- Seu Fulano - chamou ele, e o paciente seguiu discursando, sem perceber que estava sendo chamado.
- Seu Fulano, por favor – repetiu o doutor
Lá pela terceira ou quarta chamada, o senhor dignou-se a dirigir-se à sala do médico, que perguntou:
- O que é que houve, seu Fulano, porque é que veio hoje no posto?
- Eu vim hoje no posto.
- Sim, seu Fulano, estou vendo que o senhor veio hoje ao posto. Em que posso lhe ajudar?
- O senhor pode me ajudar - respondeu o seu Fulano. Eu, na sala ao lado, já tinha largado a caneta e ouvia a tudo atenta para saber em que ia dar.
- Sim, mas como eu posso lhe ajudar? – pergunta o médico aos gritos. Aparentemente, ninguém escutava bem naquela manhã, pois tudo se dava aos gritos.
Silêncio.
- Seu Fulano - continua o médico - o que o senhor veio fazer aqui hoje?
- Eu vim aqui hoje – respondeu calmamente.
- Seu fulano – o médico muda a abordagem – aqui no posto a gente tem consulta com médico, com enfermeira, com dentista, faz curativo, vacina, entrega remédio. Do que o senhor precisa, o que lhe incomoda?
Pausa. Após alguns segundos, ele responde:
- Eu estou com fome. Preciso de comida.
- De novo, seu Fulano, no posto tem atendimento com médico, enfermeira, dentista, curativo, vacina, remédio. Infelizmente, não temos comida. Esse problema eu não posso resolver agora. O senhor precisa de mais alguma coisa?
Nova pausa.
- Eu acho que eu precisava beber menos.
- Isso eu também acho, seu Fulano. A coisa mais lúcida que o senhor disse até agora. Até logo.
- Até logo, doutor, disse o seu Fulano saindo do posto calma e civilizadamente – acho que seu Fulano precisava de atenção, além de comida.
Na recepção e no resto do posto, aquele silêncio constrangido, a equipe segurando o riso e os outros pacientes comentando baixinho:
- Bêbado inútil! Vai trabalhar, vagabundo! Fica tirando lugar dos outros.
Pobre do seu Fulano, há males que a medicina moderna não resolve. E para a equipe, depois de rir e comentar o non-sense da situação, restava a nítida sensação diária de que secamos gelo com imensa competência.




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